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quarta-feira, 29 de abril de 2015

"Tolice é viver a vida assim sem aventura": Uma crônica de Gilberto Reis sobre a Expedição Brejões

A nossa aventura começou na verdade bem antes do dia 18 de abril. Na minha cabeça e na de muitos ela começou pelo menos um mês antes.Lembro-me bem que a lista inicial tinha 32 pessoas que, como sempre, foram desistindo com o passar dos dias por um motivo ou outro e outros nomes foram sendo acrescentados.

Afastado do grupo já há algumas expedições, confesso que estava ansioso e, para completar, meu filho me perguntava a todo dia se a gente ia mesmo.
Fui o primeiro a chegar no ponto de encontro cuja saída estava marcada para as 14h, mas como sempre, existe um pequeno atraso e só saímos depois das 15h.

A primeira parada em Antônio Gonçalves onde André e Jorginho já nos aguardavam com uma caixa de Dorflex líquido, essencial para quem irá se submeter a atividades físicas extremas.

A viagem, como todas realizada pela SEA é altamente alegre. Ainda mais que essa é a comemoração do primeiro ano desde a oficialização da Sociedade Espeleológica Azimute.

Logo após Jacobina, onde Edemir nos aguardava, parada para foto. As primeiras belezas da chapada começam a despontar. A vegetação muda bruscamente acompanhada do relevo, escarpas a se perderem de vista dando um tom peculiar àquela região.
Serra do Tombador em Jacobina. Primeira parada para contemplação. 

Mesmo em uma estrada acidentada, cheia de curvas e buracos, não perdemos o espírito que nos contagiava.
“... em todo porto tremulará a velha bandeira da vida...”
Já era noite quando chegamos ao pequeno povoado. Humilde, sem calçamento e com poucas casas, parecia deserto á noite.
Paramos, começamos a tirar a bagagem dos carros enquanto outro grupo ia a procura dos moradores, saber de um local propício para acampar. Foi quando ouvimos o som do violão.
Embaixo de uma varanda, no escuro, um grupo de aproximadamente dez pessoas cantava alegremente.
Resolvemos interagir com o grupo que inicialmente se intimidou um pouco com a nossa presença e parou de tocar.
Vendo a timidez do grupo, resolvemos quebrar o gelo. Sentei-me em uma cadeira, peguei o violão e puxei uma música no mesmo estilo que estavam tocando. Jorginho se encarregou de comprar um Litro (leia-se frasco) de Dorflex da marca PITU e passou para o grupo de nativos que agradeceu elogiando a música e interagindo  mais com a nossa equipe.
Decidimos deixar a galera fazer o seu som e fomos armar acampamento.

Interação com a comunidade local. Tão importante quanto a atividade espeleológica. 

Descendo do povoado já dava pra ver o paredão enorme que surgia por trás das últimas casas, ao pé do qual cresciam frondosas mangueiras sob as quais montamos acampamento enquanto alguns buscavam lenha para a fogueira e o preparo do jantar.

Enquanto Edson prepara o jantar, sentamos à beira da fogueira e começamos a tocar violão. O repertório continua variado. Engenheiros, Nenhum de Nós... “espero uma chance sua...”, Zezé di Camargo, Chitãozinho, “espero uma chance sua...”. O mito Koxó, mesmo não estando conosco não é esquecido um só minuto.



O tradicional luau e seus hinos que já são considerados clássicos nas expedições.

Eis que, em meio à escuridão da noite, surgem duas figuras. Aparecem, cumprimentam, e respondemos um pouco desconfiados.

Eles dizem que não querem atrapalhar. Ouviram a nossa música e vieram dar uma olhada. Perguntaram se podiam ficar. à resposta positiva, um deles colocando a mão embaixo da camisa saca de uma garrafa pet de 2 litros contendo uma mistura que até hoje não sei ao certo o que era mas que me deixou tonto só de sentir o cheiro.

A dupla já estava visivelmente embriagada. Cantaram como ninguém, ao seu modo. Jorginho logo se identificou com o estilo musical dos dois. “...não sou boêmio, mas hoje eu vou beber...”A madrugada começou a chegar, enquanto uns poucos restaram próximo à fogueira, a maioria ia saindo devagar e se aconchegando nas suas barracas. Em uma lona bem próxima da fogueira, alguns conversavam sobre assuntos diversos. Mãos que tateiam no escuro, bocas que se encontram. 

Enquanto busco lembrar uma letra com Jorginho, percebo que um dos integrantes da dupla que havia chegado não se encontrava conosco. Foi muito rápido para ele sumir. Ao indagar ao outro sobre o paradeiro do parceiro ele aponta para a fogueira.
Esticado, inerte no chão ao lado da fogueira, está ele que depois viríamos a saber, era tio do que restara conosco.
“Rapaz aí é meu tio. Considero demais. Mas hoje tomou todas, não aguenta mais voltar pra casa. Vou chamar pra ver se acorda.”
De dentro da barraca, me preparando pra dormir, ri demais ouvindo as tentativas em vão de acordá-lo.
“Tio Kaita, tio kaita, acorda tio Kaita. Sono de pedra arretado. Daqui a pouco vai se queimar”
Acordei já de manhã e o Tio Kaita já tinha pegado o beco.

Ao sair da barraca, deparei-me com uma cena que a escuridão da noite não me havia permitido ver.

À minha frente, erguia-se um majestoso e imponente paredão com aproximadamente 120 metros de altura. Bem no seu centro, como que esculpido por mãos não menos majestosas e precisas, uma imensa abertura que se assemelha à arquitetura gótica empregadas nas igrejas da Idade Média.

A sua base, coberta por uma vegetação diferenciada, composta na sua maior parte por palmeiras, abriga imensos blocos rochosos, frutos de prováveis desabamentos que aconteceram a dezenas, centenas e até milhares de anos.

Encaminhamo-nos para a entrada da gruta que estava há poucos metros de nós e, após centenas de fotos de TR, chegamos.
De perto, ela parecia muito maior do que realmente era. Os primeiros metros que dão acesso já não estão mais tão preservados como deveria. A gruta serve como templo para romeiros e devotos que ali erguem altares, colocam imagens de santos os mais diversos, acendem velas e deixam lá objetos que simbolizam crenças, milagres ou desejos os mais íntimos. São esculturas de partes do corpo feitas em madeira, tranças de cabelo, vestidos de noiva, camisas de times, entre tantos outros.
“Sou caipira, Pirapora nossa...”

Foto oficial comemorando uma ano da Sociedade Espeleológica Azimute. Em Pé: Geovane, Paulo,Tauan, Gilberto,Jeová,Thais,TR,lucas01,Kupi,Jorginho,Cláudia,Rebeca,Edson. Agachados: Mateus,Grigri,Altemar,Sivonaldo,André,Edemir e Aniclécio. 

Altar.

Logo depois do último altar, a caverna apresenta uma bifurcação em Y. Orientamo-nos através de um mapa antigo, da segunda metade da década de 60 e através do qual kupi também conhecido como (Seu Jorge) nos dava as diretrizes. Confiando na sua leitura e orientação, pegamos o ramo direito da caverna. Tínhamos dois objetivos bem definidos, explorar uma área da gruta conhecida como Salão dos Ossos, de onde já haviam sido retirados alguns fósseis e onde, com sorte, encontraríamos outros e logo após, encontrar umas das três dolinas assinaladas no mapa. As dolinas são formações próprias de relevo cárstico, geralmente em formato circular, e que podem permitir a entrada e saída de uma caverna.
Dolina dos brejões.

Passamos por um salão em que vimos alguns fragmentos de ossos. Isso no indicava que o salão dos ossos, nosso primeiro objetivo, estava próximo. O teto da caverna, antes tão alto, começava aos poucos ficar próximo às nossas cabeças e o conduto ia cada vez mais se afunilando. A poeira em suspensão dificultava cada vez mais a respiração, até que os integrantes que estavam mais á frente constataram que aquele conduto se fechara. Até hoje fica a dúvida, se houve um desabamento mais recente que não constava no mapa ou se de fato Seu Jorge (Kupi)se confundiu na leitura do antigo mapa.

O salão que nos deixou confusos. 

A solução então era retornar, passamos novamente pelo salão mas não voltamos para a primeira bifurcação. Descemos por outra até chegar em outro espeleotema já conhecido dos antigos exploradores. O Bolo de Noiva.

Com alguns metros de altura, ele se assemelha a um bolo gigante. Foi lá, aos seus pés, que paramos para um lanche rápido e para decidir o que faríamos.
Ao longe, dava para se enxergar uma pequena claridade, o que indicava que poderia ser o nosso segundo objetivo, a dolina.

Espeleotema: Bolo de noiva


Resolvemos então deixar as mochilas naquele lugar e sair para explorar. Enquanto um grupo procurava a entrada do salão dos ossos, outro grupo iria constatar se de fato a claridade era a dolina procurada. Ficou certo que em pouco tempo, retornaríamos todos ao bolo de noiva, socializaríamos as descobertas e decidiríamos o melhor a fazer. Fui junto com o grupo da dolina.

A Lapa dos brejões tem, na sua maior parte, salões muito amplos cujos tetos possuem dezenas de metros de altura, fruto de desabamentos que são evidenciados pela irregularidade do piso, repleto de blocos que se soltaram há anos e que dificultam muito a o nosso trânsito. São formações muito antigas e belíssimas. A textura do teto, lembra em muito os afrescos das grandes catedrais. É uma beleza realmente sem tamanho e sem explicação que só quem já participou de alguma atividade espeleológica faz ideia da dimensão e só quem esteve lá sabe de fato do que estou falando. É de encher os olhos de qualquer um.

As belezas da Lapa dos Brejões.
Junto com Tauan, TR, Claudia, Agrícia e Edemir, subi pela parte rochosa mais alta enquanto Jeová, o nosso motorista e seu filho, os mais novos integrantes do grupo, seguiam um pouco abaixo e Seu Jorge que ficara um pouco atrás verificando um conduto. Bem abaixo à nossa direita, duas lanternas um tanto quanto fracas, sumiam conduto adentro. Apenas mais tarde fiquei sabendo que se tratavam de Lucas (01) e Thais, que apesar de não estarem há  muito no grupo, se destacam bastante dentro dele.

Enquanto as meninas ficaram um pouco pra trás, eu, Edemir e Tauan chegamos à suposta dolina. De fato era uma abertura no teto. Mas antes dela, um paredão que não nos permitia, sem equipamentos, e com tanta gente, chegar até lá. Resolvemos então voltar ao bolo de noiva.

Agrícia informou-nos então de que o casal que havia descido pela esquerda ainda não havia retornado. Sentamo-nos então para esperar. O tempo foi passando e por mais que gritássemos pelos dois eles não respondiam. Pelo lado direito, Jorginho, Edemir e Edson desceram enquanto esperávamos. 

Logo que os três retornaram, afirmando que o conduto era muito amplo e que provavelmente passasse um rio logo adiante, André também se uniu ao grupo. Falamos sobre as nossas preocupações com 01 e Thais, que logo foi por ele compartilhada. Novamente chamamos até a exaustão mais os dois não deram sinal de vida.

A situação fica dramática, a espeleologia é uma atividade coletiva é inadmissível que uma parte do grupo se desgarre para explorar sem avisar.

Todos sabem que um acidente dentro de uma caverna daquele porte, com tanta dificuldades de locomoção, por menor que seja é sempre preocupante. Falta de luminosidade então é fatal. É impossível se locomover dentro de uma caverna, àquela distancia da saída, sem uma fonte de luz.
Enquanto o tempo passava, as nossas preocupações aumentavam. Decidimos então retornar, chamar o restante do grupo e então organizar grupos de resgate. O voltar ao Bolo de Noiva, outra constatação que nos preocupava, o outro grupo não havia ainda voltado.
Uma notícia boa. Jeová, que descobrira um rio logo abaixo de nós, havia avistado o casal que falou  sobre uma possível saída mas que havia se perdido novamente na escuridão da gruta.

Enquanto descansávamos, uma equipe saiu à procura dos dois, já sabendo o rumo que haviam tomado e não demoraram a encontrar. Pelo horário e pelo cansaço, decidimos então sair da gruta e retornar para o povoado.
Eram quase 14h quando saímos. Cansados, sujos, totalmente exaustos. As centenas de metros que separaram a entrada da gruta do povoado me pareceram quilômetros.
Enquanto esperávamos todos os integrantes chegarem ao povoado, eu, Jorginho e Edemir resolvemos cuidar de relaxar a musculatura para evitar futuras lesões com um tratamento á base de Dorflex líquido que conseguimos na farmácia (bar) do pequeno povoado e logo após nos deliciamos com um belo almoço à base de galinha caipira que revigorou o ânimo perdido.

Agora, refeitos da jornada, demos adeus ao povo hospitaleiro que tão bem nos recebeu e partimos para a segunda etapa da nossa aventura, conhecer o Poço Verde e procurar um lugar para acampar porque no dia seguinte a Toca dos ossos nos espera.

O carro está a maior bagunça! Bolsas, mochilas, sacolas, capacetes, colchoes e tudo o mais espalhado pelo interior. Isso tudo misturado à poeira das roupas. Entre uma cerveja e outra, digo dorflex, cantávamos a música que veio a ser o segundo hino das nossas aventuras “...tolice é viver a vida assim, sem aventuras...”. Volta e meia, só pra não quebrar o clima, lembrávamos do nosso amigo, Kupi, também denominado Seu Jorge, e cantávamos a música que o melhor representava “...São Jorge por favor me empresta o dragão...”.

E foi nesse clima de descontração que chegamos ao tão falado Poço Verde.
O Poço Verde, é um dos muitos atrativos turísticos do município de Ourolândia, situado no Piemonte da Chapada Diamantina. Suas águas transparentes refletem a luz solar na cor esverdeada o que indica uma grande quantidade de minerais na composição do seu leito rochoso. Guarda consigo um mistério, a sua profundidade jamais foi alcançada pelo homem que já chegou apenas a 60 metros da sua superfície sem no entanto chegar ao fundo.
Poço Verde. 

Hoje, o Poço Verde é protegido pelo INEMA e o banho nas suas águas não é mais permitido, mergulhos, apenas em caráter científico.
Ao chegar ao local, encontramos um portão com cadeado. Pouco tempo depois chega, o guardião do poço.
Além de nos permitir a visita, ofereceu-nos gentilmente um espaço para acampar.
Uma casa rústica com piso de sobras de mármore, cozinha e banheiro. Formou-se uma fila para o banho enquanto o acampamento ia sendo montado. Os mais viciados em tecnologia, como eu, procuraram logo um cantinho onde chegasse sinal de celular e uma tomada para o carregar.

A noite começa a cair e começamos a nos preparar para conhecer a sede do município.
Quando estávamos já todos dentro do carro, descobrimos que Geovane, o filho do motorista, acabara de entrar no banheiro para tomar o quinto banho do dia. Entre o banho e o alisar dos cabelos, que ele cuida como ninguém, perdemos quase 40 minutos. Um metrossexual em meio à caatinga da chapada.
Cabelos penteados, banho tomado, chegamos à pequena sede do município. Após provar o pior acarajé da minha vida, sentei-me no jardim ao lado dos companheiros que já se auto medicavam á base do relaxante muscular engarrafado pela skol.

Entrei no restaurante, e pedi carne do sol com macaxeira. Sentamo-nos à mesa e Seu Jorge indagava sobre as nativas. Aqui cabe um parentese (nosso amigo já estava enchendo o saco com um bordão. Sempre terminava a frase dos outros com a expressão " gosto" ou "gosto também") Ao indagar à garçonete sobre as mulheres da cidade, ela começou a explicar que a cidade era famosa pelas suas mulheres bonitas. E disse mais, “ as mulheres daqui gosta muito de homens de fora”. “Gosto também!”, exclamou Seu Jorge em ótimo e bom som. 

Passaria despercebido não fosse Tauan que enquanto devorava ferozmente um naco de carne parou, olhou para ele e perguntou, “ sério que tu também gosta de homens de fora?”
O riso tomou conta do local e mais uma vez Seu Jorge se deu mal!
Pouco tempo depois, voltamos ao acampamento, preparar-se para na manhã seguinte viver a parte final da nossa aventura.

Acordamos cedo, tomamos café, desmontamos acampamento e seguimos rumo à Toca dos ossos. Paramos para reabastecer as provisões de água e lanches e, com o auxílio de um morador, chegamos ao local desejado.
A Toca dos ossos é uma caverna de grande importância para a região. 

O nome se dá devido à enorme quantidade de fósseis da megafauna pleistocênica que eram encontrados ali. A grande maioria desse material já foi retirado para estudos, principalmente durante os trabalhos do prof. Cartelle da PUC-MG, mas ainda é possível encontrar muitos ossos. 

De início, a entrada não chama muito a atenção dos desavisados sobre os tesouros geológicos e paleontológicos ali guardados. Um buraco simples camuflado por uma vegetação rala comum ao semiárido.

Após algumas sessões de fotos, caras e bocas, adentramos a toca.


Em nada ela se parecia com a Toca dos brejões, visitadas no dia anterior. Com teto a meia altura, o seu piso nos permitia o deslocamento com maior facilidade. Logo de cara, descobrimos o porquê do alerta que André havia dado sobre a gruta ter aspecto labiríntico, a cada nova curva deparávamo-nos com uma bifurcação diferente. Após algumas dezenas de metros chegamos a uma claraboia. Claraboias são aberturas no teto que só permitem a passagem com material de rapel.

Claraboia da Toca dos Ossos.


Condutos típicos da toca dos ossos. 

Voltamos pelo mesmo caminho e, alguns metros à frente, adentramos um dos condutos secundários. Como não conhecíamos a gruta e nem tínhamos um mapa à mão, combinamos que o grupo não se separaria e a cada bifurcação deixávamos uma placa indicatória do caminho a ser seguido. 

A cada novo conduto, nova descoberta. Osso espalhados por todos os lados. Geovane tinha quase certeza de que aquilo era osso de vaca. Vacas pré-históricas.

Alguns salões à frente e retornamos para o ponto inicial.

Sentamos novamente na entrada para um lanche e uma pequena reflexão sobre tudo o que encontramos nesses dois dias. Trocamos de roupa ali mesmo na beirada da estrada e pegamos o caminho de volta, fazendo planos já para novas expedições.

O espírito mais leve, o corpo relaxado, o sentimento de dever cumprido.

Aos poucos, a vegetação vai mudando, o relevo ficando mais suave. A cada curva da estrada as escarpas e os chapadões vão ficando para trás e com eles uma saudade imensa de tudo aquilo e uma promessa de um dia retornar.

Enquanto uns cochilam, entre uma dose e outra de dorflex, entoamos em coro a música que o rádio tocava.

“...e toda raça então experimentará para todo mal a cura! Iê, Iê...”


A alegria que me dá. isso vai sem eu dizer...
nós somos muitos não somos fracos
Parabéns SEA!
Autor: Gilberto Reis. 

terça-feira, 30 de abril de 2013

LIQUIDIFICADOR, JANELAS E UM BOI QUE VIRA PREÁ por Gilberto Reis











Era para ser uma simples aventura. A rotina preparada para esse ano com todas as turmas escolares. Toca da Barriguda: Sorvete, Salão Vermelho, Salão do Urso. Sumidouro, banho de lama e retorno. Mas o pessoal da segunda série do ensino médio do colégio Sacramentinas queria mais. Queriam uma “aventura mais punk” segundo eles. De tanto insistirem, o professor André Vieira, integrante e presidente do grupo CAACTUS de espeleologia resolveu dar de presente para eles o que ele chamou de “a maior aventura de suas vidas”. Chegar até a Passagem do Lobo Deitado, na TB, local de difícil acesso e onde nenhuma turma escolar jamais havia chegado. 



As expectativas durante as duas semanas que antecederam a expedição eram muitas. Mesmo para mim, que conheci a TB em 2001 e que ultimamente acompanho sempre as expedições estudantis com o grupo CAACTUS, era uma grande novidade. Nunca havia chegado até o Lobo Deitado.


Os vitoriosos que ultrapassaram seus limites pra chegar até o salão do preá







Era um domingo frio e úmido, resquícios das chuvas dos últimos dias. As 5:30h da manhã, já recebia SMS de Amanda Maia, ansiosa para saber se a gente ia ou não. Confirmei e me dirigi para a escola onde o grupo já me aguardava. Um total de 38 pessoas. Saímos exatamente às 5:50h da cidade de Senhor do Bonfim com destino à aventura das nossas vidas. A primeira parada no distrito Tiquara para o café da manhã já é rotineira nas nossas expedições. Foi lá que o motorista aproveitou para abastecer o ônibus. Nos abastecemos de água, demos mais uma revisada nos mapas, no nosso roteiro e seguimos sertão a dentro ao som de Engenheiros do Havaí, Los Hermanos e, volta e meia, alguém pedia um Jorge e Matheus. Sem contar que Wilbert nos fez trocar Engenheiros por Calcinha Preta. O clima antes frio e úmido começa a mudar conforme vamos penetrando no sertão. Da vegetação típica, pouco resta.


O tradicional café na Tiquara







Já no caminho algo parecia dizer que essa tinha que ser uma aventura diferente em todos os sentidos. Logo após sair da Tiquara, o ônibus começou a parar toda hora. A qualquer tombo mais forte ele simplesmente desligava. Ao indagar sobre o ocorrido fiquei sabendo através de Gabriel (boi), que após essa aventura ficou conhecido por PREÁ, que a válvula de aceleração do ônibus estava com problemas. Já fiquei imaginando o que poderia acontecer se acontecesse de ficarmos sem transporte no meio daquele sertão sem nenhum meio de comunicação disponível. 



Paramos na povoação de Pacuí, acertamos a nossa janta com a dona Ederlí, inclusive pedimos que preparasse um bolo já que uma das integrantes do grupo, Beatriz Queiroz (bia), estava aniversariando, e seguimos adiante. 



Ouvi um barulho esquisito, e logo em seguida o ônibus parou. Torci para não ser verdade mas logo obtive confirmação: dois pneus do ônibus haviam sido cortados pelas pedras. Isso a mais ou menos meia légua da entrada da gruta. Motoristas param para nos ajudar e afirmam que nenhuma borracharia da região trabalha com aquele tipo de pneu. Só nos resta seguir a pé enquanto o motorista dá providência no conserto dos pneus. Combinamos de nos encontrar às 16:00h e seguimos.


Ônibus da biba com os dois pneus cortados





Exatamente ás 11:15h entramos na TB. 



Logo de cara, os marinheiros de primeira viajem ficam assustado com o calor e a umidade do interior da gruta, o cheiro de guano aliado ao dos gás acetileno liberado pelas carbureteiras dão um toque diferente ao local. 



Começamos a nossa aventura pelo Salão da Árvore, passamos pelo Salão Vermelho, Salão do Fóssil e no Salão do Urso paramos, já às 12:30h para um rápido lanche, reposição de líquido e instruções de como seria o próximo trecho que só André  conhecia. 





salão vermelho 

             
                    Pausa para o lanche e para foto no Salão do Urso.





Após o lanche, André pediu silencio, conversou um pouco com a galera e explicou que a partir de agora começava o trecho sinalizado. Instruiu a todos sobre como se localizar através das placas e a tomar cuidado para não derrubar a sinalização. Avisou a todos que a aventura estava apenas começando. De fato, o próximo trecho era muito acidentado. Com bastante pó que mais se assemelhava a areia movediça. Atrás de cada rocha um buraco que escondia um pequeno abismo. Cada passo dado precisava ser meticulosamente calculado. Foi aproximadamente uma hora de caminhada até chegarmos à passagem do lobo deitado. Era uma abertura muito estreita, com aproximadamente 70 cm de largura e 50 cm de altura. Foi preciso rastejar. André passou primeiro, depois Gilmar D’Oliveira, fotógrafo da equipe e, na ordem, as mochilas e equipamentos, as mulheres e por ultimo os homens.



Já na entrada Gabriel (preá) não queria passar. Achava que não cabia. Mas, com o apoio da galera, começou a atravessar. No final a passagem fica um pouco mais estreita e ele começou a se apavorar. Após passado o susto respirou aliviado.



Preá literalmente entalado na passagem do lobo deitado



Gilberto Reis fazendo a travessia 



Após uma hora de espera, cansaço e suor, finalmente todos passaram. O alívio foi grande ao perceber que havíamos atingido o nosso objetivo. Não esperávamos porém, que mais surpresas nos aguardavam. André novamente pede a palavra. “Jovens, parabéns por terem chegado até onde poucos chegam e nenhuma turma estudantil jamais chegou. No entanto gostaria de anunciar que a nossa aventura não termina aqui. Agora iremos descer um pequeno abismo vertical, o “liquidificador”. Após ele..., bem, depois que descermos a gente vê o resto”.


Após passar o lobo deitado descansando para enfrentar o temido liquidificador




Enquanto alguns deitaram, outros lancharam, foram sendo organizados grupos de cinco integrantes para descerem o tal abismo. Felipe Maia, Matheus Wacheux, Ruan e Virgínio se encarregaram de ajudar o pessoal a descer. Duas das meninas, Rebecca e Andressa ao verem a altura que deveriam descer desistiram. Disseram que não conseguiriam. Foi quando PREÁ resolveu ver de perto. Voltou vermelho, com a voz trêmula: “velho, eu não desço aí de jeito nenhum. André tá louco. Eu se fosse você também não descia”. Gilmar grita do outro lado: “então somos dois a ficar aqui com as meninas”. Aí as minhas pernas já começaram a tremer. Sempre tive fobia a altura e desencorajado desse jeito confesso que pensei duas vezes antes de ver por onde desceria.

O tal liquidificador é um pequeno abismo vertical de aproximadamente dez (10) metros de profundidade em espiral de acesso muito difícil. Resolvi que iria até o final. Não tinha feito todo aquele esforço para ir só até metade da aventura. Não sei viver de metades. Não gosto de meias verdades. Não iria amarelar logo agora. Respirei fundo e comecei a descer. Ajudado por Maia adentrei a boca do liquidificador disposto a ir até o final. Após a descida em espiral, Ruan me aguardava no final. Me ajudou a sair e quando pensei que o pior havia passado ele me indicou uma pequena fenda por onde deveria passar. Só aí entendi qual era o “resto” que André não quis falar lá em cima. 

A fenda, chamada de janelinha é uma pequena abertura na rocha onde para passar é preciso mais que esforço físico. Se faz necessário ser um pouco contorcionista. Passei com um pouco de dificuldade, imaginando se Preá tivesse descido como passaria por lá. Encontrei André no fim da passagem, expliquei que o pessoal ficara lá em cima e ele decidiu voltar e buscar todo mundo. Me arrastei mais um pouco e esperei o restante do grupo no Salão da Vitória Sobre a Morte. Nome aliás, propício. Quem chega até lá é mesmo vitorioso.

Andressa Barbosa ou as pernas dela atravessando a Janelinha;

Salão vitória sobre a morte

Vitória sobre a morte outro angulo



Algum tempo após a minha chegada Gabriel (boi) também chega ao salão contando que entalou na janelinha, deu xilique e quase não passa. Enquanto conversávamos esperando que o restante do grupo chegasse percebi que ele saiu correndo e gritando “Gilberto, Gilberto, olha só isso”; apontei a lanterna para a sua direção e não enxerguei nada além de estalactites e estalagmites. Resolvi acompanhá-lo junto com Geovanna. Quando o alcançamos e indagamos o que ele viu respondeu prontamente “um preá. Uma fêmea”. Começamos a rir. Como poderia um roedor sobreviver dentro de uma gruta à distancia que estávamos da entrada? Mas ele jura até hoje que viu. André lhe explicou que foi apenas uma alucinação mas ele não se conforma. Por isso falei no início do relato que o boi virou Preá. 

Ainda queríamos ir um pouco mais longe, mas o tempo não mais nos permitia. Eram já 15:30h quando decidimos que o melhor seria retornar.


Preá, Gilberto e André preparativos para o retorno. 

Refizemos todo o percurso e, exatamente sete horas após entrar no mundo subterrâneo, saímos, imundos, fedidos, cansados mas com o sentimento de objetivo alcançado. Dever cumprido. Fomos recebidos por uma leve e gostosa brisa e um lindo céu de abril nos brindar com sua beleza. 

Terminamos a nossa aventura com um belo banho noturno na nascente do rio Pacuí para tirar o lodo, o cansaço e devolver um pouco da energia gasta, observados por uma linda e graciosa lua cheia que deu o seu toque mágico à “aventura das nossas vidas”.

Depois do banho, bode assado, galinha caipira e o bolo de bia. “... oh bia eu vou comer seu bolo...”
De volta para casa, um pouco de história sobre o mundo das cavernas e depois, sono.
Só quem chega até onde a gente chegou entende de fato o significado que tudo isso tem para nós. Só quem sabe do suor derramado, entende o valor de uma foto dessas. Sabe como é se sentir vivo. Sentir que ainda possui sangue correndo nas veias e energia vital para desafiar os próprios limites. Desfiar seus medos.


Se você conseguir entender tudo isso, parabéns! Se não consegue, como diria Jorge Aragão “...faça o favor, respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”.





Comemorando aniversário da Bia.

Agradecimentos ao nosso fotografo profissional Gilmar d´oliveira por todas as fotos registradas na aventura.

A toca da Barriguda é uma beleza única entre as cavernas brasileiras, um calcário claro e muito ornamentada ! certamente uma das mais belas do Brasil.

Gilberto Reis.