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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Toca da Boa Vista: Expedição Discos Voadores

   




  Final dos anos 90 e começo dos anos 2000: nessa época eu devorava todos os artigos publicados na revista “O Carste" sobre a Toca da Boa Vista (TBV). Cada artigo contava com riqueza de detalhes as descobertas e as aventuras feitas pelos espeleólogos do grupo Bambuí. Adquiri em 2004 um exemplar do livro “As grandes cavernas do Brasil”, nesse livro contém os mapas das maiores cavernas brasileiras. Perdi a conta de quantas vezes eu ficava por horas olhando o mapa da TBV, que é divido em mundos devido a sua grandeza, e imaginando como seria chegar lá, naqueles locais contados na revista e visualizados no mapa.

  A gente cresce e descobre que o mundo não está nos livros e nem nos mapas. O mundo está lá fora para ser visto, sentido e tocado. Há milhares de anos foram forjados os grandes salões da maior caverna da América Latina pela força da água e das intempéries, e esses ditos salões “esperam” por homens e mulheres de coragem e disposição para se aventurar, encontrar e contemplar sua vasta magnitude.
   Um desses salões é chamado Salão dos Discos Voadores, sendo uma formação rara, onde estalactites, estalagmites e jangadas se fundiram em uma era remota, deixando um vestígio de onde um dia fora um lago. Em 1997, o fotógrafo Adriano Gambarini tirou uma foto do referido salão, que foi publicada posteriormente na revista National Geographic. A foto correu o mundo inteiro e qualquer um que a visse deslumbrava-se facilmente. E essa era, então, a nossa justificativa para a missão: ir em busca de uma foto nossa do célebre Salão dos Discos Voadores. 

  Com um mapa de quase 3 metros desenrolado em uma calçada, expliquei para os participantes da expedição o nosso roteiro dentro da TBV. Primeiramente, consistia em entrar pelo Abismo do Sapo, para depois chegar no Salão dos Discos Voadores e, por fim, sair por outra entrada da caverna, fazendo um percurso conhecido como: “Boa Vista Clássica”. Nesse momento eu previ três contratempos e apontei-os no mapa, em ordem cronológica: encontrar o Salão dos Perdidos; sair dos discos voadores para a Praça do Papa; e encontrar a saída.


Detalhe do mapa da TBV de 2005. 

    Exatamente às 13:00 horas, do dia 17 de janeiro de 2014, depois de ter descido o temido Abismo do Sapo, todos os integrantes da expedição já estavam no interior da caverna. Tendo encerrado a primeira etapa, a próxima era seguir em frente com uma cópia reduzida do mapa em mãos, indo em busca do Salão do Bode. Quanto ao nível de dificuldade, como previsto anteriormente por todos, encontrar o Salão mencionado foi fácil. O problema surgiu ao tentar encontrar a passagem que nos levaria ao Salão dos Perdidos. E assim começaram os nossos tormentos.

A equipe: Gilmar, Alexandre, Aurélio, Paulo Barriga, José Araújo (Ojuara) André Vieira; Ágata Correia; Filipi Kupi; Claudiney Dias (Ney) e Altemar Serafim.


  Tentamos vários caminhos, várias passagens, e todas eram fendas terrivelmente altas, nada mais do que abismos colossais; a maioria eu nem arriscava dar um passo e já dizia para o grupo: "deixamos esse como última opção". Ao analisar todas as possibilidades e concluir que não tínhamos opção, apenas restava escolher uma passagem específica e descer sem cordas. Fui o primeiro a descer o declive, localizado à esquerda do Salão do Bode; em seguida, foi a vez de Ney. Planejamos explorar os condutos encontrados logo abaixo, de modo a saber se havia possibilidade de prosseguir ou não para o nosso destino, ou seja, o Salão dos Perdidos, pois havendo, confirmaríamos para que os demais viessem atrás.


Detalhe no mapa do primeiro trecho percorrido. O caminho percorrido do abismo do sapo ao abismo do bode está em vermelho. Em verde quando rodamos e só encontrávamos abismos no salão do bode. Em azul quando estávamos tentando achar o salão dos perdidos em um nível inferior.


  Nesse momento se faz necessário um questionamento: como saber se estávamos ou não no caminho certo? O mapa é apenas uma planta baixa que não nos diz nada sobre teto ou a forma dos condutos, mostra apenas uma malha labiríntica de passagens interligadas, e nos dá relativamente uma direção para onde seguir. A nossa certeza vinha ao encontrarmos bases topográficas deixadas pelas equipes que fizeram a topografia da caverna e, posteriormente, registraram-nas nos mapas. Essas bases são pedaços de fita de pano ou de material sintético, nas quais são inscritas letras e números. Os topógrafos registraram esses códigos nos mapas e deixaram as bases nos locais. Então, recapitulando, quando achávamos alguma base, conferíamos no mapa e tínhamos noção de onde estávamos localizados. No entanto, existia uma problemática: muitas das bases foram colocadas há mais de 20 anos e, por isso, foram desgastadas, devoradas por traças, logo, não estavam  mais presentes ao longo da caverna.



  Após descer o abismo, em alguns momentos de exploração, encontrei uma base topográfica, a DS3. Ao conferir no mapa, notei que a mencionada base posiciona-se próxima ao Salão dos Perdidos. Com isso, todos desceram o pequeno declive, enfrentando certa dificuldade, Porém, sem maiores contratempos. Então caminhamos um pouco e, assim que a DS6 fora encontrada, paramos para descansar. Estávamos contentes, pois, segundo o mapa, o Salão dos Perdidos estava logo ao lado. Assim, seguimos adiante e encontramos um salão com alguns blocos abatidos, e eu, inocente, comemorei dizendo: “chegamos enfim ao Salão dos Perdidos!”. Mas, algo estava errado, os condutos que prosseguiam desse salão encontrado não condiziam com os que estavam presentes no mapa.



   Passamos horas que nem baratas tontas caminhando em círculos. Nossa sina era: entrar e sair de passagens e só encontrar bases com a sigla HP, que pelo nosso mapa não eram referentes ao Salão dos perdidos. Passava-se das 5 da tarde, esse era o tempo estimado para completar todo o percurso tramado inicialmente, e o pior de tudo: ainda não estávamos nem no Salão dos Perdidos, o primeiro dos obstáculos. O cansaço e o desânimo me abateram. Cogitei a possibilidade de desistir, retornando de onde estava, e transferir a missão para outra expedição. Porém, a caverna nos “ensina” a ter paciência e perseverança. Nosso colega Paulo Barriga frisava a todo tempo não ter nada para fazer lá fora, que era de sua vontade sair apenas de madrugada. Captei a mensagem de meu colega: não havia motivos para desistir agora. Além disso, a confiança de Altemar e o ânimo dos novatos Ojuara, Kupi, Aurélio e Ágata me contagiaram e, desse modo, não desisti.



 Voltei para base DS6. Resolvi tentar todas as alternativas possíveis. Portanto, fui escalando em direção ao teto, juntamente com Aurélio, e encontrei uma passagem que resultava em um Salão superior, fiquei surpreso, pois era imenso. Gilmar e Ney viram a nossa luz e nos encontraram por outra caminho ─ vale mencionar, com acesso até mais fácil. Pelo fato de ser o salão mais bonito até então encontrado, no mínimo valia a pena todos subirem até lá.


Salão dos perdidos.

   Deparamo-nos com um grito de Ney sobre a referência de uma base. Sem demora, Gilmar conferiu no mapa e pronto, finamente estávamos no Salão que faz jus ao nome: o escondido Salão dos Perdidos. Localizado em um nível superior (detalhe de difícil identificação no mapa). Por fim superamos o primeiro obstáculo, mesmo com tempo e esforços maiores do que o previsto a princípio.

   Partindo desse ponto para os Salão do Discos Voadores foi um pulo. Sempre em frente, em uma trilha batida, com condutos a meia altura e com algum pó no piso, enfim chegamos ao Salão dos Cones gigantes e Salão dos Discos Voadores. Missão cumprida, restava então relaxar e aproveitar a sessão de fotografia. Uns fizeram um lanche e ainda houveram aqueles que aproveitaram tanto ao ponto tirarem um cochilo. Nesse momento estava tudo na mais tranquila ordem.
Salão dos cones gigantes!


Conduto que liga o salão dos cones gigantes ao salão dos discos voadores.

Nosso troféu, o objetivo final era essa foto do salão dos discos voadores! tal como a foto publicada por Adriano Gambarini a primeira pergunta de quem vê essa foto é questionar se tem ou não tem água.


  Kupi estava estudando os mapas e, com isso, me apresentou um dilema: dos discos voadores até o ponto onde deveríamos chegar, o conduto Afonso Pena, existiam duas alternativas. Ou pegaríamos um caminho linear enfrentando abismos, ou um caminho labiríntico, porém sem abismos.


Discutimos a questão e a decisão final consistia em tentar o trajeto dos abismos. Nota-se que não seria apenas um abismo, mas sim três até chegar no Afonso Pena.



  O primeiro abismo era na verdade um paredão calcário cheio de arestas pontiagudas que chegava facilmente aos 5 metros de altura.

  

A reação do pessoal foi sentar e olhar o paredão com ar de frustração. Tomei a iniciativa e escalei a imponente parede. Tratava-se de uma escalada complicada, mas não impossível. Paulo Barriga escalou em seguida. Nesse lapso, o pavor tomava conta de um dos integrantes, o nosso fotógrafo Gilmar. Ele assumidamente tem pânico de lugares altos, e dizia constantemente não querer prosseguir no trajeto escolhido. Para ele o melhor era voltar e tentar achar o caminho labiríntico da Praça do Papa. Enquanto isso, Paulo e eu explorávamos além do Abismo. Por outro lado, Gilmar, Kupi e Ojuara tentavam desvendar os caminhos dos Discos Voadores para a Praça do Papa.

Nosso segundo desafio: Em amarelo o a primeira tentativa dos discos voadores aos abismos. Sem sucesso tentamos o outro caminho em verde, chegamos na praça do papa e de lá chegamos no conduto Afonso Pena. O mapa também mostra o conduto do torrão.

    

  À vista disso, voltamos e esperamos por alguma novidade dos que foram procurar o caminho da Praça do Papa. Gilmar chegou ofegante e sorridente, trazendo a boa nova que encontraram o caminho. Perguntei despretensiosamente se chegaram na Praça do Papa, ele respondeu que sim, disse ter visto até o próprio Papa. Todos caíram na risada, mas a verdade era que eles tinham apenas achado uma base que marcava o começo do labirinto. Sofremos mais uma vez, tal qual para achar o Salão dos perdidos, entretanto, no momento com dois agravantes a mais: primeiramente estávamos desgastados, e, por conseguinte, os condutos que ligam o Salão dos Discos voadores à Praça do Papa são de teto baixo, resultando, portanto, em longas distâncias se arrastando, se contorcendo e jogando mochilas de um lado para outro.
  


 Nessa hora observei o grupo e percebi algo. A importância de uma equipe que alterna entre juventude e experiência. Eu, Altemar, Alexandre, Paulo Barriga e Gilmar estávamos visivelmente cansados, apenas seguindo o fluxo. Quem liderava nesse trecho era a nova geração, os marinheiros de primeira viagem: Kupi incorporou um grande navegador, olhava e estudava atentamente os mapas, apontando para onde deveríamos seguir a todo momento; enquanto que Ágata, Aurélio e Ojuara espalharam-se em várias direções, entrando e saindo de condutos poeirentos atrás de bases para dar referência de onde estávamos. Felizmente o esforço valeu a pena, pois não demorou muito até chegarmos ao conduto Afonso Pena.

 O conduto Afonso Pena é um conduto largo e comprido, mas com o piso coberto por uma tonelada de um pó fino e negro. Mesmo pisando delicadamente, cortinas imensas desse pó cobrem os andarilhos da cabeça aos pés. A visibilidade é quase nula. Assim, caminhando e tossindo, fomos atravessando a passos largos o conduto. Mostrei para o pessoal o interessantíssimo “torrão”, isto é, uma curiosa formação de blocos maciços de coloração negra. São tão leves quanto isopor. Podemos segurar blocos de tamanho de uma TV de 14’’ polegadas apenas com as pontas dos dedos. Na verdade, tanto o pó que cobre o piso como o torrão são vestígios de depósitos colossais de guano encontrados alí há milhares de anos.


  O conduto Afonso Pena termina no Salão Telécio, um salão de grande volume, talvez o maior da caverna. Esse salão foi uma homenagem ao político José Teleshoro de Araújo, que era conhecido como Telécio, trata-se de um dos descobridores da Toca da Boa Vista.


Retomando a nossa jornada, do Salão Telécio chegamos ao Salão da Guanogmite. A partir daqui iniciou-se nosso drama final.
 Defrontamo-nos com o seguinte conflito: as bases encontradas até o momento não estavam nos mapas, e as que estavam registradas no mapa não eram encontradas na caverna. O trecho além de ser labiríntico, é muito acidentado. As lanternas já estavam se esgotando e a água tinha acabado.


  Estávamos desorientados, e infelizmente a situação era crítica. Já eram quase 22h, e não podíamos perder mais tempo procurando a saída, uma vez que estávamos sem água. Precipitei-me e cometi um erro bobo, me separei do grupo sem avisar e fui à procura da saída. Estava sozinho caminhando por um labirinto, sem isqueiro, sem água, sem comida, apenas com uma lanterna reserva nas últimas.



   Quando percebi a gravidade da situação resolvi voltar para junto do grupo, então retornei para o Salão da Guanogmite onde estavam os outros, no entanto, me deparei com o silêncio e a escuridão. Para meu desespero, o grupo tinha seguido em frente. Todos decidiram seguir uma trilha de fitas vermelhas sem nenhuma base, e eu fiquei para trás.




Mapa do labirinto entre o salão da guanogmite e a entrada que no nosso caso era a saída.



Gritei. Gritei muito por longos 10 minutos e não obtive resposta. Tentei em vão procurar alguns condutos próximos e quanto mais me afastava, maior era o desespero. Por estar a todo tempo gritando, minha boca já estava sem uma gota de saliva. Além disso, minhas pernas doíam de tanto subir e descer as ladeiras presentes nesse trecho.

  Meu único pensamento era: “se minha luz apagar eu estou morto”. Para minha sorte, o resgate veio. Ao longe ouvia alguém chamar meu nome, era Gilmar e Ojuara. Recompus-me e perguntei se eles finalmente tinham encontrado a saída.

A resposta foi negativa, a pista que eles tinham seguido esfriou e eles estavam mais perdidos que cego em tiroteio, em um lugar mais labiríntico ainda.

  
  Eu, Gilmar e Ney nos espalhamos enquanto os outros esperavam descansando em um ponto central. Então finalmente encontrei um trecho promissor contendo marcações com pedras em cima de outras. Nada mais do que o indicador do caminho da saída. E assim foi. À medida que fui me aproximando de trechos que me eram familiares, gritei para que todos me seguissem, pois tinha encontrado finalmente a saída.

 Pós exploratório: da esquerda pra direita - Aurélio Correia, Ágata Correia, José Araújo ( Ojuara), André Vieira, Gilmar Oliveira, Claudiney (NEY) Altemar Serafim. Em pé - Alexandre Santos, Kupi e Paulo Barriga.



Ao fim todos estavam exaustos, maltrapilhos e impregnados de pó preto, mas, por outro lado, com uma grande satisfação por ter realizado um grande feito.



  Realmente a TBV é uma caverna para gente grande! Para a elite dos aventureiros. Em 2013 fomos ao Fim do Mundo, em 2014 fomos aos Discos Voadores e ano que vem, em 2015, está marcada a nossa visita oficial ao Além Mundo. Vamos para o extremo norte da caverna, que venha a expedição Oiapoque!


Texto: André Vieira
Revisão do texto: Ágata Correia















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