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quarta-feira, 17 de junho de 2015

Expedição Baita: o efeito CARUARA

São 06h da manhã de 04 de junho e três espeleólogos estão prestes a passar pelo mais terrível acontecimento. O pior terror que um espeleólogo pode passar. Aquilo que assombra a todos que exploram cavernas. . .

Alguns meses antes. Recebo um telefonema do coronel aposentado do corpo de bombeiros da cidade de Recife - Pe. O coronel  Maviael Remine, que alguns anos atrás realizou conosco um treinamento de espeleoresgate no trecho da Toca da Barriguda que dá acesso ao Salão Caatinga, entrou em contato para retornar ao mesmo local que fizemos o treinamento. Acertamos tudo para o feriado da semana santa. O grupo que o coronel Remine recrutou pra essa aventura era um pouco diferente do anterior, com uma faixa etária diversificada e com menos treinamento, meu primeiro pensamento foi que dessa vez não passaríamos pelos obstáculos que antecedem o Salão Caatinga.
Coronel Remine de vermelho e sua turma de Recife.
Pequeno destacamento da SEA pra acompanhar a expedição.


A expedição com o grupo do coronel seguia com um ritmo bom até que uma novidade surge no caminho que estávamos percorrendo. Depois de certo trecho de caminhada o percurso que leva ao salão caatinga era sinalizado com fitas refletivas coladas em pequenas placas de zinco. Em uma caverna extremamente labiríntica com elevada umidade e acessos complicados, essa sinalização era estratégica. Para nossa surpresa nesse dia ao chegar ao local que deveria estar às placas de sinalização, percebemos que elas foram retiradas.  O risco de pegar uma trilha errada e não conseguir mais voltar era real. A turma foi avisada dos riscos e consentiram em seguir confiando na minha memória pra lembrar qual caminho seguir quando aparecerem às bifurcações... 
Exemplo de placa sinalizada

Voltemos aos espeleólogos do início da postagem. Depois de uma travessia de cinco exaustivas horas caminhando, rastejando, escalando em uma temperatura ambiente escaldante e com umidade  relativa do ar beirando aos 100% chegamos ao ponto onde determinamos que  deveria ser nossa parada para descanso, tentar dormir naquelas condições era difícil, mas também era necessário já que estávamos na metade do caminho para alcançar nosso objetivo final.  Os corpos transpirando como nunca visto antes refrigerava aos poucos o sangue que parecia ferver. 


Nesse momento, Sivonaldo se mostrava inquieto, não conseguia deitar como o restante de nós. Tossia sem parar, e ia e vinha como que algo o incomodava. Avisou que iria se afastar do grupo para urinar, e demorou excessivamente. A cada 5 min, Ney gritava perguntando se Sivonaldo estava bem, ele retornou dizendo que não estava. Que estava sem conseguir respirar normalmente.  Foi a deixa que Ney precisava pra declarar que também não estava nada bem.
- O que sente Ney? Perguntamos.

- o coração acelerou. Só estou pensando coisa ruim. Quero sair. Respondeu.

Estávamos a uma longa distancia da entrada, levamos 5 horas da entrada até aquele ponto. Ney me perguntou se ele conseguiria achar o caminho até a saída. Para não atrapalhar nosso objetivo ele desertaria com Sivonaldo enquanto o restante de nós continuaríamos com o objetivo. 

Respondi prontamente que era improvável que ele e Sivonaldo conseguissem retornar sem se perder, além do que seria um tormento para o restante do grupo continuar a expedição sabendo que dois integrantes estavam passando mal tentando achar o caminho em uma caverna cheia de armadilhas e que confunde até os mais experientes espeleólogos.

Precisávamos tomar uma decisão rápida. Cada segundo que passava Ney e Sivonaldo pioravam  ...


De volta à expedição com a turma do coronel. Estávamos tendo sucesso com a trilha sem as sinalizações. Chegaram então os tão temidos obstáculos. O primeiro era o rastejo da passagem conhecida como a passagem do lobo deitado.  A turma já tinha lido aqui mesmo no blog sobre essa passagem e segundo eles: “não foi tão aterrorizante como pensamos” passado o lobo deitado ainda tinha a temida “janelinha”, uma estreita passagem no meio da parede em que temos que mostrar habilidades de contorcionista para conseguir atravessar. Mais uma vez a turma pernambucana surpreendeu e nenhuma dificuldade foi registrada. Ao sair do trecho da janelinha encontramos as desaparecidas placas sinalizando o caminho.  No entanto, algo estava errado.  Percebi de pronto, que as placas estavam sinalizando para a direção errada.  Pensei um pouco, analisei o ambiente e tinha certeza as placas estavam apontando para uma direção contrária ao Caatinga. Será um novo atalho?  Informei a turma o que se passava e o coronel Remine demonstrando total confiança no meu julgamento sugeriu que deveríamos deixar as placas sinalizadas para trás e seguir por onde eu achava ser o caminho correto. Assim o fizemos.  Eu sabia que se estivesse correto encontraríamos o mais chato dos obstáculos, um paredão de 8m em que temos de escalar com uma corda de segurança presa na parte superior. Enfim chegamos ao paredão e mais uma surpresa desagradável: a corda que ficava presa a um pino, tinha sido recolhida, não apenas a corda, mas todo o aparato que fixava a corda na parede. O recado agora estava claro. “ não queremos ninguém chegando ao Salão Caatinga”  quem teria feito isso?  e por quê ? Respondo esses questionamento mais a frente...
Alex, um dos integrantes do grupo Remine, esperando a sua vez pra fazer a travessia do lobo deitado.
Escalada sem corda do paredão. Obstáculo mais difícil.

Ney e Sivonaldo estavam impacientes sentiam os sintomas de quem está preste a entrar em pânico.  Apenas eu sabia o caminho de volta para entrada. Eu não vi alternativa. Decidi que levaria os dois até a entrada enquanto o restante do grupo descansaria e voltaria o mais rápido possível. Perguntei se tinha alguém disposto a nos acompanhar. Percebi que a galera estava no limite e que o pensamento era de desistir e voltar todo mundo. Lucas01, levantou e disse que me acompanharia na jornada de levar Ney e Sivonaldo a entrada e retornar rapidamente para o local onde estávamos. 
Já nos preparando para partir, mais uma baixa, Andinho também pede pra sair. Os sintomas? Os mesmos dos outros dois. A síndrome conhecida como CARUARA o que é a caruara? Segundo o dicionário é sf. (tupi karuara) 1. feitiço, mau olhado, quebranto. 2 Reg (nordeste) Enfermidade sem causa aparente. 3. achaque.
Aqui no nordeste usamos a palavra para quando alguém apresenta sintomas físicos inexistentes para justificar um medo. Em outros lugares falam que a pessoa amarelou,  arregou, aqui dizemos que bateu a caruara.  Como sabemos que era caruara? Por que durante o caminho em direção à saída, os três melhoraram não tinha mais a falta de ar em Sivonaldo nem a câimbra no sangue de Ney, fomos em em um ritmo alucinante. Lógico sem bagagem e com um grupo pequeno era esperado que ganhássemos tempo. Mas não era esperado que os "doentes" tivessem tanto gás. Enfim chegando próximo a o primeiro grande salão depois da entrada. Conhecido como salão do URSO. Perguntei aos caruaras se eles acertariam o caminho a partir daquele ponto. Era muito fácil, praticamente andar em linha reta avisei.  Eles aceitaram. Regressei com 01 para onde o restante do grupo repousava.  Sem nem imaginar os momentos de terror que os três espeleólogos enfrentariam dali em diante.... 

Os três caruaras. Ney, Sivonaldo e Anderson.

Enquanto escalava sem corda o paredão de 8m refletia sobre quem teria a intenção de dificultar ainda mais a chegada ao Salão Caatinga.  Já no topo do paredão o coronel me joga a ponta de uma corda e fiz uma ancoragem improvisada. Momentos de tensão estão por vir. A turma do coronel que até então estava achando tudo ótimo.  Começaram a tremer enquanto eram praticamente içados por uma corda com roldana para o nível superior. Cada um que eu segurava na mão dando um apoio na chegada ao topo apresentava expressão de medo.  
Após escalar o paredão, existe um estreito caminho em que temos que passar com muito cuidado, pois existe um abismo na parte direita.  Até então eu nunca havia notado dificuldade naquele trecho. Os pernambucanos que já estavam abalados com o paredão tremeram na base nesse caminho e após a travessia sentaram e confessaram. “ foi a pior parte”. Era unanimidade entre eles, aquele caminho escorregadio totalmente inclinado com um abismo abaixo era o pior obstáculo de todos. Foi então que batizei essa parte de caminho pernambucano.  E prometi que publicaria aqui essa nota pra que outros que um dia se atrevam a passar por aquele local saibam que segundo os pernambucanos, não tem lobo deitado ou janelinha que assuste, mas sim o tal caminho pós paredão agora conhecido como caminho pernambucano. Finalmente chegamos ao salão caatinga e lá conversamos sobre tudo que tinha acontecido. Por que retiraram as placas sinalizadoras? Por que novas placas indicando um caminho contrário foram colocadas? Por que a corda e a chapeleta parafusada na parede do paredão foram recolhidos? Quem teria feito isso. Foi então que lembrei o que li no blog terrasubespeleo. Vou transcrever o trecho e deixar linkado pra quem quiser conferir:
Além da Boa Vista, as equipes também estiveram em outras cavernas da região - como Toca da Barriguda - onde foram delimitadas áreas de proteção e caminhamento a fim de proteger partes frágeis das cavernas”
Essa expedição realizada pelos integrantes do grupo bambuí de pesquisas espeleológicas aconteceu em janeiro de 2015.  E o que eles querem dizer com “delimitamos áreas de proteção” foi exatamente isso. Isolar o Salão Caatinga. Se já era difícil, agora tá quase impossível chegar. 
Link: terrasub

É verdade que o local é frágil e que é impensável uma visitação em massa.  É verdade também que a galera do grupo bambuí foram os descobridores, que se não fossem eles talvez até hoje esses locais estivessem desconhecidos. Foram eles que sinalizaram o caminho e talvez seja justo que tenham mudado de ideia. Por outro lado temos que pensar;   Que outros grupos de espeleologia também tem a consciência de conservação e deseja visitar os locais, seja pra conhecer, seja pra estudar seja pra continuar o mapeamento de lugares que ficaram em aberto no mapa.  Então delimitar a área não significa que só eles podem visitar. Estou fazendo esse questionamento pois tenho dúvidas sobre as placas indicando caminho contrário.
E assim terminou a expedição com o grupo de Pernambuco. Nesse momento ficou decidido que em junho iriamos montar uma expedição somente com os membros mais ativos da SEA, com o objetivo principal de ir além do salão caatinga, chegar ao ponto mais distante que a gente conseguir. Esse ponto conhecido é o Salão Baita. 
chegada ao salão caatinga. Exp. Abril 2015.


Uma expedição ao Salão Baita exigia uma logística diferenciada, iríamos acampar no Caatinga. Sabia que alguns membros iriam ser afetados psicologicamente e fisicamente. Depois de semanas de discussão da logística, resolvemos que dessa vez entraríamos a noite e assim foi, entramos a 01 e 30 da madrugada. E estabelecemos um prazo máximo de 20 h dentro da caverna contando da entrada ao salão caatinga que era metade do caminho. Do Caatinga ao baita que seria o trecho desconhecido. E todo o retorno pelos mesmos locais até a saída da caverna. 



Era também nosso objetivo conferir até onde iriam as placas sinalizadas apontando caminho contrário ao caatinga e fazer o registro dos fósseis que são encontrados entre o Salão Caatinga e o Salão Baita. 



Tínhamos um problema adicional que era o paredão, escalar na mão sem equipamentos não era seguro, então tivemos que levar os equipamentos para Ascensão do paredão e, além disso, muitos e muitos litros de água, e muita iluminação reserva. Coincidência ou não os primeiros voluntários pra carregar o pesado equipamento que seria utilizado para subir o paredão foram os caras que sentiriam mais tarde o efeito caruara: Sivonaldo, Andinho e Ney.


O local que escolhemos pra descanso é simplesmente o mais espetacular. Salão caatinga.
Alguns dos tesouros encontrados no caatinga. Cristais de gipsita? selenita?
outro tipo de tesouro são os fósseis encontrados as dezenas. esse é de um gambá.

Depois que Lucas e eu deixamos os caruaras próximo à entrada e retornamos ao Caatinga, encontramos o grupo inteiro roncando. Já era oito e meia da manhã, e agora que a expedição começaria realmente ....

Enquanto um grupo estava explorando o desconhecido caminho pra chegar ao Salão Baita no ponto mais extremo após a entrada. Os três espeleólogos caruaras estavam em situação difícil. Sivonaldo não conseguia enxergar, a umidade do ar embaçou seus óculos de tal forma que ele apenas era guiado pelos outros dois. A certo ponto estavam as lágrimas de desespero, entraram em alguns condutos errados e se desorientaram, completamente perdidos entraram em pânico. Andavam em círculos , gritavam por socorro. E a cada hora que passavam ficavam sem luz e água. A sensação de que o fim estava próximo tomou conta de Ney, que não tinha mais ação. ...

Lá na frente o grupo que ia em direção ao Baita seguia a todo vapor alguns rastejos longos, e muitas pausas para se orientar com ajuda dos mapas. É verdade que a partir de um certo ponto voltam as placas sinalizadoras que vão até perto do Salão Baita. Mas a essa altura do campeonato era preferível aprender o caminho com ajuda dos mapas que apenas seguir placas. Apesar de cansativo tudo ia dentro do esperado, ritmo bom, pausas pra fotos, identificação dos fósseis e etc. Até que chegamos ao último salão antes do Baita. O Salão 2000, tem três níveis, um superior, um intermediário e um inferior. E nesse ponto demorarmos muito pra localizar o caminho que nos levaria ao baita. 99% do grupo estava sem gás nesse ponto. Similar ao que aconteceu em outra expedição que realizamos na Toca da Boa Vista, a força vem de onde menos esperamos. Nesse momento valeu a tenacidade de Tais Cursino  e Jeová(novatos no grupo), Jorgean e Zero um, que enquanto o restante de nós descansava eles não paravam averiguando todas as possíveis entradas que poderia indicar o caminho que levaria ao Salão Baita. E enfim, conseguimos nosso objetivo quando o relógio marcou meio dia. Quase 12 horas de cavernada até então e ainda tem a volta, mas essa sabíamos que seria mais rápida. A confraternização lá no baita foi muito bacana, os casos de Ivomar foram impagáveis. Relembramos tudo que passamos naquele dia, forramos o estomago descansamos e pegamos o caminho de volta. Só quando saímos da caverna por volta das 17 e 30 foi que encontramos Ney, Sivonaldo e Andinho e que ficamos sabendo de como eles ficaram perdidos próximo a saída e como depois de muito desespero seguindo as pegadas mais marcantes, conseguiram encontrar o caminho a superfície.

Entre mortos e feridos todos vivos. Em mais uma grande expedição.
Foto do nosso objetivo. Não conheço outro registro fotográfico desse lugar :Salão Baita.
Foto oficial da maior expedição desde a fundação do Azimute. Em pé: Ney, Anderson, Paulo, Sivonaldo, Gilson, Jeová, Jorginho, Ágata, Agrícia, Ivomar, Mateus, Sentados: Altemar, André, Jéssica, Tais, Kupi, e lucas zeroum.






3 comentários:

  1. Relato incrível, ao mesmo tempo de assusta, instiga. Parabéns a todos!!!

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  2. André
    Chegaram perto, mas este ainda não é o salão Baita. Ele fica uns 200 metros mais a frente e tem um teto alto.

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  3. Ézio, as bases topográficas que encontramos batia com as que estavam no mapa referentes ao Baita. Era um amplo salão, pena que não tiramos boas fotos. Mas, se ali ainda não é o baita, ficamos mais instigados para conhecer esse limite da TB.

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