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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Quando o mel é bom, a abelha sempre volta...Uma história sobre lama, superação, botas (ou a falta delas) e muita lama. Por Filipe L. Kupi

Quando o mel é bom, a abelha sempre volta...
Uma história sobre lama, superação, botas (ou a falta delas) e muita lama.
Por Filipe L. Kupi - 09/2015.

*lamentavelmente Kupi não conseguiu terminar essa crônica por ter sido atropelado de forma irresponsável em Outubro de 2015. Optei por deixar o texto do jeito que a família me passou, sem fazer acréscimos apenas adicionando as fotos.
André Vieira de Araújo - 10/2016.



     Há exatamente um ano atrás (Agosto de 2014) a SEA falhava na sua segunda tentativa em atravessar a Lapa do Convento por toda sua extensão (10 km) por falta de equipamento necessários aliado a alguns ataques de hipotermia sofridos por dois membros da nossa equipe.



     Aquela altura, André (nosso presidente) recebera duras críticas. Eu fui um que o critiquei por achar que ele não deveria ter interrompido a expedição sem cumprir o objetivo. Outras críticas porém, eram no sentido oposto, as de que as expedições estavam se tronando frequentemente muito perigosas. E talvez estivessem. Se não fosse assim audaciosas não teria agradado a André. Que antes de qualquer coisa é um explorador a moda antiga.

     Desde aquele dia eu não havia tirado da cabeça a possibilidade de voltarmos para completar a travessia e quando foi anunciada a programação para agosto, senti que seria dessa vez que iriamos conseguir adentrar num mundo de galerias subterrâneas que foram visitadas em toda sua extensão apenas uma vez (que se tenha conhecimento).



     Botes salva vida, colchão inflável, boia, mochila estanque, roupas térmicas, lanternas e o remédio caseiro pra hipotermia (produzido pelo Mcgyver do Sertão - Josan). Todos os itens de segurança conosco e então onze guerreiros do subterrâneo partiram de Campo Formoso no micro-ônibus cedido pela Prefeitura Municipal, embalados ao som da dupla Simone & Simaria, o grupo demonstrava ansiedade para encarar o desafio.

Foto Oficial. Travessia do Convento (08/2015). Ivomar, Altemar, Alexandre, Cláudia, André, Jéssica, Jorgean, Edson e Anderson em pé; Kupi, e Lucas ZeroUM agachados.

     Chegamos ao povoado de Casas Velhas e estacionamos em frente á propriedade do Sr. Toinho, que fora o ponto final da nossa travessia do ano anterior e que seria nosso ponto inicial nessa aventura (a primeira parte da caverna é bastante conhecida pelos membros do grupo) enquanto nos preparávamos, o dono da propriedade tentava nos assustar com histórias assombrosas sobre o nível da água e a existência de uma onça próxima a entrada da caverna, nos desejando boa sorte.



     Como não tínhamos noção da localização da saída da caverna no meio de uma vegetação fechada e provavelmente durante a noite, Tivemos a ideia de dividirmos uma caixa de fogos de artificio, levaríamos uma parte dos fogos para o interior da caverna e deixamos a outra parte com o motorista do ônibus, o plano era simples: assim que a gente sair da caverna soltaríamos os fogos e o motorista seria responsável por responder soltando os fogos que ficaram com ele, auxiliando assim, na direção que deveríamos seguir para localizar o povoado aonde ele nos aguardava. (cuidar desses fogos era fundamental para o nosso sucesso, e por isso eles ficaram na mochila estanque (que teoricamente é impermeável á água).



     Municiados do equipamento necessário, seguimos andando em direção à claraboia (um gigantesco desabamento que divide a caverna em duas partes). No ano passado fizemos o percurso da entrada principal até esse desabamento (claraboia) quando André decidiu abortar a expedição; Desta vez iríamos começar pela claraboia e fazer todo restante da travessia por locais que ninguém do grupo conhecia. Antes mesmo de adentrar a caverna ocorreu um incidente que iria ser crucial no decorrer da travessia. Alexandre, um dos mais experientes do grupo, avisa que perdeu o solado da bota, mas que ainda assim iria tentar fazer a travessia. Inicialmente ele tentou colar a sola com Fita Silver Tape.
     Atravessamos por entre os grandes blocos que marcam a entrada da claraboia tivemos uma agradável surpresa, ali na abertura dessa parte da caverna, no ano passado a água passava tranquilamente dos 4m de altura, e agora estava seco. Sem água, apenas uma lama lisa e algumas pequenas plantas se atreviam a brotar.




O grande desabamento que divide a caverna em duas partes. Ao contrário do ano anterior dessa vez estava completamente seco, apenas com uma ralo vestígios de algas na parte esquerda da parede.



     Surpresos com a falta de água, por alguns momentos imaginamos que teríamos mais facilidade para realizar a travessia, as marcas passadas do nível da água eram assustadoras, em outras épocas estaríamos 4 ou 5 metros submersos, seguimos por alguns minutos, sempre seguindo o padrão reto da caverna, que apresenta poucas bifurcações e condutos laterais, além de ser pobre em espeleotemas (ao menos na parte em que nos encontrávamos). A lama aparecia cada vez mais frequente e densa e as primeiras poças apareciam e em pouco tempo foi inevitável entrar na água, os grandes salões com seguramente mais de 15 metros de largura formavam lagos extensos de profundidade desconhecida, então paramos para encher os botes e o colchão inflável e fui ao lado de Jorgean na vanguarda puxando o primeiro bote.



     A água estava muito fria, mas estávamos preparados para tal, em alguns pontos éramos submersos e para passarmos com segurança amarramos uma corda entre os dois botes, onde a equipe poderia se apoiar nos locais de maior dificuldade. OBS: Foi Hilário ver nosso croquista Ivomar subindo no colchão inflável e remando para o lado errado. O mesmo aconteceu com André quando se aventurou com a boia. Aparentemente o fluxo da água corre no sentido oposto ao nosso objetivo.

     Seguimos por aproximadamente uma hora e meia pela água, que não dava trégua, raramente estava em uma profundidade inferior a 2 metros e foram poucos os momentos em que nossos pés tocavam o chão, até que paramos em uma “ilha” de lama e então nos alimentamos, alguns ainda que sentiam mais frio tomaram uma dose do remédio milagroso. André insistia que a temperatura da água era em torno de 23 a 24 ºC, mas todos duvidavam. A sensação era que estivesse próximo ao ponto de congelamento!


     Seguindo em frente chegaríamos a uma bifurcação que dá acesso a uma entrada conhecida como “Buracão" para o lado esquerdo e a continuidade da caverna para a saída desconhecida seguindo o lado direito. Teoricamente não haveria muitas dificuldades para chegarmos, fora o chão levemente escorregadio, mas ainda eram duas horas da tarde e não havíamos passado tanta dificuldade assim. André tinha nos alertado pra ficar atentos a conduto lateral que deveria estar próximo. Então começou a procura por esse conduto, enquanto parte da equipe secava os botes (que acreditávamos que não seriam mais necessários) a outra parte tentava identificar possíveis entradas laterais, por onde seguiríamos.



     André localizou um conduto que ficava em um aclive, já bem próximo ao teto, e liderou o grupo pra explorar esse conduto que se mostrou incrivelmente difícil, isso por que a temperatura aumentou drasticamente no conduto que ia se estreitando até o ponto onde não era possível mais passar com as mochilas e demais equipamentos. Durante uns 40 minutos, percorremos um conduto apertado agora em declive até André avisar que o conduto sufocante em que estávamos deitados um depois do outro em fila indiana, era sem saída! Não havia local por onde pudesse seguir. A única coisa a fazer era retornar, levamos o dobro do tempo para refazer o penoso trajeto de volta e o pior é que alguns já demonstravam sinais de cansaço devido a esse contratempo.


Início do sufocante conduto lateral com fundo cego.



     Poucos metros à frente, localizamos o real conduto lateral que deve nos levar até a próxima saída. Segundo os cálculos do nosso presidente, deveríamos percorrer entre 3 a 4 km por esse conduto e enfim completar a tão sonhada travessia. O conduto começa relativamente largo, com 5 a 6 metros de largura e com muita lama no chão. A lama não começou de um momento para o outro; As poças cada vez maiores foram ao poucos tomando conta de todo o conduto e quando percebemos já estávamos em um mar de lama marrom e viscosa que às vezes alcançava até o joelho.




Início do nosso drama na lama.



     Alguns trechos a lama formava apenas uma fina capa, nesses locais as quedas eram inevitáveis. Jéssica e Zeroum inventaram uma técnica de deslizar por esse trecho como se estivessem em uma pista de patinação. Alexandre já tinha perdido o solado da bota nos trechos em que ficamos atolados na lama. E eu já não aguentava carregar os botes desinflados que a essa altura com uma grossa camada de lama pesava cerca de dez quilos cada. Resolvemos parar para um lanche.


O ponto em que depois de uma sucessão de quedas , Kupi decidiu que não tinha mais condições de levar os dois botes e deixa um para trás.



     Sempre curto essas pausas para o lanche durante as cavernadas, podemos descontrair, relembrar causos de outras expedições, comparar quem trouxe os lanches mais saborosos (nunca tínhamos tido essa experiência com tanta lama) e levantar a moral dos que já demonstra algum tipo de cansaço. Ivomar, Jéssica e eu começamos uma guerra de lama, que logo tomou grandes proporções e até os mais sérios estavam passando lama uns nos outros.

Pausa para o lanche e momentos de descontração. 




    Caminhamos mais alguns metros e finalmente a lama desapareceu, ficamos aliviados. Por que a caminhada na lama era extremamente lenta e desagradável. 


     Mas, infelizmente as coisas não melhoraram. O conduto ficou muito mais estreito (1 a 2m de largura) e sinuoso. E á água voltou a aparecer. O leito do conduto estava forrado por pedregulhos de diversos tamanhos, os menores teimavam em entrar nas botas pela parte de cima a medida que caminhávamos por dentro da água. Para Alexandre que estava sem uma das botas, era um pesadelo do qual não se acordava nunca.

- São apenas 3 km, repetia André, é uma distância curta! Percorrer 3 km dentro d' água gelada, carregando peso, e com os pés descalços pisando em pedras pontiagudas, não 3 km podem ser uma distância longa. Desejamos a lama de volta, a pista de patinação. As quedas e o peso nas botas agora pareciam muito agradáveis. Como é extraordinária a capacidade que temos de mudar rapidamente nossas ideias.


A partir desse trecho o conduto se tornaria bem sinuoso, a água retorna e o piso deixa de ser uma lama fina e viscosa e passa a ser preenchido por pedregulhos submersos de diversos tamanhos e formatos.



    Esse trecho parecia interminável, sempre fazendo curvas, ora pra esquerda ora pra direita, esquerda e novamente direita e o tempo inteiro com água na cintura , volta e meia tínhamos que atravessar pequenas barreiras cortantes (travertinos) que era um verdadeiro tormento. As paradas ficaram recorrentes, sobretudo por causa da situação de Alexandre cujo os pés já estavam muito machucados. Tentamos improvisar com garrafas pet, mas não deu certo, tentamos revezar as botas com ele, mas ele insistia em não aceitar. 
Em uma dessas paradas de descanso, ZeroUm contava displicentemente para Jéssica como era agradável que a mochila que ele carregava estava quente, mesmo numa água tão fria. Jéssica tocou na mochila e perguntou por que a mochila dele estava com aquela temperatura. Na mesma hora, André fez uma cara de espanto e pediu pra ZeroUm tirar a mochila imediatamente das costas. Todos ficaram sem entender aquele espanto. Pela forma que André falou parecia que ZeroUm estava carregando uma bomba. A verdade é que era quase isso.


Detalhe da situação tensa de Alexandre sem as botas. A alternativa encontrada foi colocar fita Silver tape nas meias.





    Na mochila estanque que ZeroUm carregava estavam as pedras de carbureto, que quando entram em contato com a água reagem formando um gás altamente inflamável. André percebeu que por alguma razão a água entrou na mochila e reagiu com o carbureto formando o gás quente  que explicaria as altas temperaturas no interior da mochila. Agora, imagine um gás altamente inflamável junto com os fogos de artifícios e uma garrafa de cachaça (remédio milagroso de Josan) era praticamente um “coquetel molotov”. E explosão seria questão de tempo. Felizmente conseguimos desfazer a mistura explosiva. Agora nossos olhos estavam voltados para os fogos que ficaram levemente molhados. O horário já estava adiantado , uma altura dessas o motorista que tinha ficado esperando pela gente do lado de fora já devia estar preocupado. Se quando sairmos (sabe se lá que horas) não tivermos os fogos para avisar ao motorista e ele responder nos indicando uma direção pra seguir, seria um golpe muito duro.

    Agora precisamos simplesmente ir embora, por mais que isso pudesse parecer extraordinariamente difícil, principalmente para Alexandre, que com bolhas nos pés estava pulando de um pé só. Os tais 3 km pareciam ter triplicado e por mais que caminhássemos não chegava nunca o final desse conduto tortuoso e alagado. Uma sensação inconfundível de apreensão se espalhava entre o grupo, ninguém queria expressar, mas todos estavam pensando. "O que seria de nós se o conduto fechasse mais a frente? Se tivéssemos que voltar por esse mesmo caminho?" Duvido que alguns pudessem retornar pelo mesmo caminho de volta.

     Já faz quase uma hora depois da nossa última parada para descanso. Estamos esperando um ponto para descansar e agora que chegamos num conduto seco, parece o local ideal. Enquanto o grupo estava parado André, Jorginho e eu resolvemos ir olhar mais a frente se o conduto continuaria seco ou se tinha algum indicativo de que a saída estava próxima.

    Foi Jorginho que deu a má notícia. "O conduto Fecha, hein". Acaba aqui em um desabado! Não era possível! Nosso pior pesadelo acontecera. Eu fui correndo dar a notícia ao grupo enquanto, André insistia com Jorginho que devia haver alguma passagem por debaixo dos blocos.




O final do conduto alagada terminava em um pequeno salão seco e desabado sem continuação aparente.




       
    Como era de esperar o grupo reagiu muito mal com a terrível notícia. Estavam todos no limite da exaustão. Discutiam entre si a possibilidade de uma parte do grupo retornar e outra ficar com Alexandre que definitivamente não suportaria refazer esse trajeto mesmo com uma bota emprestada.



    Sorte a nossa que Jorginho gritou de lá, “achamos uma passagem”. André e Jorginho se espremeram por entre os blocos abatidos e reencontraram o conduto. Muita sorte que a área desabada estava seca se tivéssemos que mergulhar para encontrar essa passagem estaríamos condenados a ter que refazer o penoso caminho de volta, talvez carregando Alexandre e mais algum nos ombros.



      Logo depois de passar por esse desabamento, a luz da lua indicava uma saída no alto. Seria uma escalada e teria uma dificuldade, mas o pior havia acabado. Agora sabíamos que não era necessário voltar pelo mesmo caminho. André e Andinho continuaram a seguir o conduto sem dar importância a essa saída, André gritava lá da frente que a travessia não acabava ali. Que deveria ter mais uns 500 m para a verdadeira saída. Porém, o restante do grupo não tinha condições de seguir. E até eu que da outra vez, critiquei tanto por não ter completado a travessia, dessa vez estava disposto a não terminá - la em prol do restante do grupo. André foi voto vencido, e mal ele tinha retornado pra tentar convencer o grupo a continuar, e já tinha gente fazendo a escalada. Aceitamos nossa derrota quase apáticos. Estávamos simplesmente cansados demais para se importar ...




Lucas Zeroum e Alexandre foram um dos últimos a escalar a a pequena abertura que levava ao mundo exterior.



     A escalada por essa pequena janela no teto teria sido difícil se estivéssemos descansados, mas na situação que nos encontrávamos escalar aqueles rochas pontiagudas e praticamente verticais, perpendicular ao piso foi extremamente exaustivo. Alexandre finalmente resolveu aceitar as botas de ZeroUm que fez a escalada apenas de meias.



     Finalmente conseguimos sair, era mais de meia noite, e por todo lugar que olhássemos a mata fechada impedia que víssemos qualquer vestígio de civilização. Chegou a hora de executar o plano que tínhamos combinado com o motorista. Jorginho acendeu o primeiro rojão e em segundos o barulho explosivo dos fogos se espalhou pelo céu. Depois de uma salva de palmas e uma excitação do grupo por ter dado certo (apesar, do rojão estar ainda úmido) um silencio angustiante tomou conta do grupo na espera pela resposta do motorista. Alguns minutos se passaram e nada... Só contávamos com mais três fogos. Vamos caminhar um pouco e soltar o próximo. E assim fizemos. Outra vez, não obtivemos resposta. Será que estamos fora do alcance do povoado? Será que o motorista não teve paciência e resolveu entrar na caverna para tentar algum resgate?


Primeiros momentos depois de 12 horas de muita lama e frio. Não sabíamos nesse momento que o pior estava por vir.



     Não poderíamos estar em situação pior. Perdidos, sem suprimentos e completamente esgotados. A situação do grupo era simples, e aterrorizante em sua simplicidade. Se pretendíamos de algum modo sair dali, teria que ser por nossa própria conta.

    Ao contrário do interior da caverna que tínhamos a garantia que se não conseguíssemos fazer a travessia voltaríamos pelo mesmo caminho. Aqui fora, estávamos completamente perdidos. A sobrevivência não era uma simples questão de resistir. A verdade era que nossa situação era terrível. Totalmente desorientados e vezes sem conta passando pelos mesmos locais,(andamos em círculos o tempo inteiro constatou Edson) não demorou a chegar os desentendimentos sobre o que fazer. O meu único pensamento era encontrar o ônibus, definitivamente o ônibus. Ele significava ir embora para casa!

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