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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Expedição Trincheira-Arrecife: Uma nota sobre o Tempo Profundo

A primeira vez que me deparei com essa expressão “Tempo Profundo” foi no livro bilhões e bilhões do Carl Sagan.  O primeiro capítulo do livro traz a seguinte história:

Um expositor em um planetário revela a sua plateia que, em 5 bilhões de anos, o Sol vai inchar até se tornar uma estrela gigante vermelha, que engolfará os planetas: Mercúrio, Vênus e finalmente a Terra.  Em seguida, um membro da plateia o aborda-
“Desculpe-me, doutor, o senhor disse que o Sol vai arrebentar a Terra em 5 bilhões de anos?”
“Sim, mais o menos”
“Graças a Deus. Por um momento pensei que tivesse dito 5 milhões”.

    Sagan usa essa anedota pra nos explicar que 5 milhões ou 5 bilhões, tem pouca importância para nossas vidas pessoais. 
   Quando falamos o número “Dez!” não só é fácil escrever como também é fácil sentir o número. Visualizamos a sua manifestação em objetos e até mesmo olhando para nossas mãos. No entanto, se dizemos 100 milhões ou um bilhão, as pessoas dificilmente podem sentir esses números. Ao tratar da história geológica da Terra estaremos na esfera do Tempo Profundo, que trata desses números de milhões a bilhões e que é tão estranho  à nosso cotidiano que precisamos de uma dose extra de paciência e imaginação para poder perceber sua imponência.

Ainda do livro bilhões e bilhões tem um exercício que nos ajuda a por esses grandes números em perspectiva. 

Quanto tempo levaria para escrever a partir do 0 um número por segundo durante dia e noite os seguintes valores:

    Valor                                                        Tempo para ser escrito

Um (1) -------------------------------------- um segundo.
Mil (1000)---------------------------------- 17 minutos.
Milhão (1000 000)------------------------ 2 semanas.
Bilhão ( 1 000 000 000) ----------------- 32 anos.

Com o tempo profundo em mente começaremos nossa expedição pela era geológica mais recente chamada de Cenozóica que vai de 65,5 milhões de anos até a atualidade. 

Foto Oficial da expedição  SEA de Out/2016. Da esquerda para a direita: Ericson, Estevan, Marcelo, Huelber,Juliano,Natanel e André.



Cerca de 65 milhões de anos atrás um calcário muito antigo e que por longas eras esteve soterrado foi exposto a superfície dos terrenos localizado no centro –norte da Bahia. Essas rochas calcárias sofreram com o intemperismo, erosão e seus sedimentos foram transportados para o fundo de grandes lagos onde foram consolidados e formaram uma rocha carbonáticas denominada de calcário Caatinga. Por volta de apenas 2,5 milhões de anos atrás esse calcário Caatinga sofreu ação da dissolução da água e formou importantes cavernas como: Toca dos Ossos, Toca do Gonçalo e a Toca da Trincheira que foi a nossa primeira parada nessa expedição.
Visão externa do afloramento do calcário Caatinga com destaque pra entrada da Toca da Trincheira.


Inicialmente nosso plano era fazer a topografia, mas tivemos problemas com o equipamento (trena laser).  Apesar desse contratempo, a caverna rendeu boas surpresas. 

Enquanto a maioria do grupo me ajudava com as pesquisas biológicas, Juliano resolveu explorar sozinho  um dos dois condutos laterais que a caverna apresenta.

O conduto lateral está situado próximo ao poço onde aflora o lençol  freático esse mesmo poço foi drasticamente alterado com a construção de um muro ao seu redor.  

    Meia hora depois da prospecção solitária, Juliano retorna e nos conta que o conduto é baixo e estreito e deixou todos surpresos ao contar que encontrou no meio do conduto apertado um tubo de 50 mm de diâmetro de um poço tubular que está bombeando água.
Ponto onde o lençol aflora no interior da caverna. Os antigos moradores da região construíram uma cerca de pedra pra proteger o poço e os animais que caiam dentro.  


Após a pausa para o lanche decidimos explorar o outro conduto lateral (próximo a uma das entradas). Nesse conduto que também é de teto baixo e com dimensões estreitas, encontramos vários vestígios de ossos que parecem ter sido transportados por eventos de enxurradas.  Entre esses ossos destaca-se uma mandíbula de lagarto. Notamos depois de muito rastejar que esse conduto se interconecta com o que Juliano previamente explorou.
Vestígio de uma mandíbula provavelmente de um lagarto de médio porte. 
 Outra curiosidade foi observar o registro estratigráfico que evidencia eventos cíclicos de sedimentação que ocorreram ao longo do tempo e que aparentemente ainda ocorre.  Reforçando a máxima que "o presente é a chave do passado".
 
Área escavada mostra uma sequencia estratigráfica com sedimentos de cores e tamanhos diferentes.

Finalmente, encontramos na saída da caverna uma matriz rochosa com dezenas de incrustações  fósseis de pequenas conchinhas de moluscos. Corroborando  que esses calcários foram formados em regiões lacustres. Boas inferências podem ser feitas com o estudo desse material. Tudo indica que ainda retornaremos outras vezes na Trincheira. 
Amostras de conchas de Gastrópodes encontrados presos nas rochas da área da Toca da Trincheira.

Nossa expedição foi finalizada com a visita ao  Geossítio: Fazenda Arrecife. Onde  tivemos a oportunidade de perceber as marcas deixadas nas rochas há mais de 600 milhões de anos. 
Visão geral do afloramento da Fazenda Arrecife. Professor Estevan palestrando sobre o Criogeniano.

      Quando falamos da Toca da Trincheira estávamos mencionando o calcário Caatinga que foi formado em épocas relativamente recentes pela erosão e transporte de sedimentos de um calcário mais antigo que fora exposto. Agora no sítio da Fazenda Arrecife podemos estudar a formação desse calcário antigo que são chamados de calcários do Grupo Una. 

Para ilustrar como era a Bahia na remota época em que os calcários do Grupo Una se formaram vou utilizar figuras retiradas e adaptadas do livro a História Geológica da Bahia do Geólogo, Historiador e Artista Plástico - Rubens Antônio da Silva Filho.



Em uma era geológica chamada Proterozoico que significa (anterior à vida) e que se estendeu de 2,5 bilhões de anos até 540 milhões de anos atrás, os terrenos dessa região do que hoje é a Bahia passou por drásticas transformações. 

De 1,35 a 1,3 bilhão de ano atrás, margeando a serra de jacobina existia um mar conhecido como Mar Caboclo, suas águas eram típicas de um ambiente de plataforma marinha rasa, em que sedimentos eram depositados em condições de tranquilidade. Nessas águas, aparecem os primeiros registros de Vida no que hoje é a Bahia. 
Figura adaptada do livro a História geológica da Bahia.


Entre 850 e 750 milhões de anos, o planeta passou pelo maior período de Glaciação de todos os tempos. Esse período é conhecido como Criogeniano, as temperaturas atingiram médias de -50 °C nos polos e médias de dez graus negativos no equador. As geleiras chegaram a centenas de metros de espessura. As capas polares árticas e antárticas se uniram no Equador transformando a Terra dessa época no Planeta Bola de Neve.

Representação artística feita por Rubens Antônio. Apresentando os terrenos Baianos cobertos por um gelo que avançava de leste a oeste e consequente recuo do Mar Caboclo.
Representação artística do Snowball Earth do período Criogeniano. 


     A Bahia nesse período tinha suas montanhas cobertas de gelo. A glaciação aqui ficou conhecida como Glaciação Bebedouro-Macaúbas.

De acordo, com o Professor Rubens Antônio:


 “ Das nossas montanhas desceram grandes geleiras, que abriram caminho por vales, alargando-os com sua força, raspando, lixando e arranhando o pavimento rochoso sobre o qual se apoiavam. Isto devido ao deslocamento de grandes blocos rochosos, que as geleiras arrancavam e arrastavam por grandes distancias. Como os blocos rochosos de Jacobina que foram encontrados atualmente próximo a Irecê, significando um deslocamento de 150 km”.

A glaciação Bebedouro-Macaúbas se encerrou entre 705 a 700 milhões de anos atrás, e nesse período uma nova bacia se formou nos terrenos baianos. Uma grande e progressiva invasão marinha formou o grande Mar Bambuí. 
A Bahia a 700 milhões de anos atrás. Mostrando o avanço do grande Mar Bambuí. Desenho de Rubens Antônio.

700 milhões de anos atrás a Bahia estava quase completamente afogada pelo grande e raso Mar Bambuí. A esquerda avançavam, o microcontinente da Amazônia, empurrando uma pequena ilha de Goiás. Abaixo, o microcontinente Paraná-Rio da Prata. Em pouco tempo todas essas massas de terra estariam agrupada em um supercontinente chamado Gondwana.

    Em um clima ameno, nas margens rasas e tranquilas do Mar Bambuí grandes colônias de micróbios fotossintetizante se proliferava intensamente. Ao retirar o gás carbônico pra realizar a fotossíntese, essas colônias induziam a precipitação de tapetes gelatinosos de carbonato que enrijeciam e formavam camadas sobrepondo gerações anteriores dessas bactérias.

A rocha calcária que aflora na Fazenda Arrecife são geologicamente classificados como pertencentes ao Grupo Una e possuem duas formações:
A formação Bebedouro, que ocorre na sua base, tem origem glacial, onde, sedimentos foram transportados por geleiras a partir da Serra de Jacobina; E a formação Salitre, que ocorre no topo, constituídas por rochas carbonáticas, ricas em estromatólitos formados por colônias de bactérias fotossintetizantes que vivam no Mar Bambuí. 

Os estromatólitos (do grego stroma=cama, camada e lithos=rocha) são estruturas laminadas construídas ,principalmente, por cianobactérias que se desenvolvem como um tapete de colônia dependentes da energia da luz solar para se alimentar e crescer, recolhendo-se em estado dormente à noite para porções mais internas do montículo por elas criado e voltando no dia seguinte à superfície; nestes processos, secretam carbonato de cálcio que fixa e cimenta finas partículas dispersas na água o que origina as lâminas que se superpõem e fazem crescer os montículos que tendem a formar colunas verticalizadas.

Esquema mostrando a formação das estruturas fósseis conhecidas como estromatólitos.

   A fazenda Arrecife possui uma das mais impressionantes exposições de estromatólitos colunares associados a eventos de tempestade. Devido a sua preservação, esses estromatólitos possuem grande importância para estudos de paeloambiente, datações e paleontologia de microfósseis. 

Um dos aspectos mais notáveis dos estromatólitos desse sítio é que eles podem ser vistos na forma de planta e de perfil.(Setas).

No estromatólito a alternancia de faixas cinzas escuras e cinzas claras significam respectivamente as colonias de bactérias e o sedimento precipitado em cima das colônias.

Em um lugar como esse da Fazenda Arrecife tendo em perspectiva o Tempo Profundo podemos refletir sobre o verdadeiro significado da palavra humildade. 


     Na série de TV cosmos o apresentador da nova versão Neil deGrasse Tyson nos mostra um calendário cósmico comprimindo todo os eventos conhecidos do universo em um único ano para nos dar um vislumbre da imensidão do tempo. 
      Nessa escala cada mês do calendário corresponde a um pouco mais de um bilhão de anos. Cada dia equivale a 40 milhões e as horas são milhares de anos. 
A origem do universo estando situado no dia 1 de Janeiro do calendário, a vida só vai aparecer no final de setembro (na forma de seres unicelulares como as bactérias) e assim vai permanecer reinando única e solitariamente por mais de 1 bilhão de anos. Nesse calendário a extinção dos dinossauros ocorreu no dia 30 de dezembro. 
Pense sobre isso, se passaram 13 bilhões de anos desde a origem do universo sem a presença do Homem. 

Todas as pessoas que você já ouviu falar, todos os reis, batalhas e guerras. Pense nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que a glória do triunfo pudessem ser o senhor momentâneo de uma fração desse quase nada de tempo. 
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão que temos uma posição privilegiada no Universo. Tudo isso é posto em dúvida na imensidão do tempo geológico.

Não somente somos um minúsculo ser viajando no asteroide pequeno que todos chamam de Terra, como também no vasto oceano do tempo nós humanos aparecemos na última hora do último dia do ano cósmico.

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