Guano: vida e morte nas fezes dos morcegos

Eles voam com as mãos, enxergam com os ouvidos, dormem de cabeça para baixo e suas fezes são a fonte principal de vida nas cavernas. Vamos aprender um pouco mais sobre os morcegos e sua importante relação com as cavernas. Os morcegos são mamíferos que pertencem a ordem Chiroptera ou Quiroptera como fica em português. Essa palavra é derivada do grego Cheir ( mão) e pteron (asa) e é uma referencia a maior particularidade desses animais que é a sua capacidade de voar, o morcego é o único mamífero que pode voar e para isso ele utiliza as mãos que a evolução transformou em asas. A estrutura das mãos dos morcegos são parecidas com as nossas ou de qualquer outro mamífero. A principal diferença é a proporção. Nos morcegos, os dedos são finos e compridos, quase do tamanho do corpo. Os dedos são unidos por uma membrana elástica. Para voar, basta afastar os dedos e mover os braços para cima e para baixo. Um leve ajuste nos dedos é capaz de gerar ângulos variáveis, fazendo com que possam atingir velocidade de até 50 km/h. Com todas essas adaptações para o voo, suas pernas são fracas e não sustentam o peso para caminhar de forma ereta como nós, essa é uma das razões pelas quais eles ficam de cabeça para baixo, a outra razão é que isso ajuda ao alçar voo, basta se desprender e deixar a gravidade agir, sem ter que gastar energia correndo ou com grandes impulsos como fazem as aves. Os morcegos tem as plantas dos pés voltadas para frente, o contrário das nossas que é voltadas para baixo, isso ajuda ao se prender no teto ou na parede e quando soltar estar na posição mais fácil pra alçar o voo. 

Um Artibeus fimbriatus pendurado no teto da Toca do Angico - Campo Formoso - Ba. 

Foto: Arquivo CAACTUS.

Um exemplar morto de Plathyrrinus lineatus, encontrado na Lapa do Convento, esse exemplar mostra claramente como os dedos são bastante desenvolvidos e que a membrana entre os dedos formam a asa desse magnifico animal. É possível observar também a palma do pé voltada para frente e não para baixo como nos demais mamíferos. Foto: Arquivo CAACTUS.

Os morcegos são comuns em cavernas, mas saem delas regularmente para se alimentar, por isso são classificados como animais Trogloxenos, isto é, que não são capazes de viver exclusivamente dentro das cavernas. Os morcegos formam colonias nos tetos e frestas das galerias e salões das cavernas, eles defecam na área abaixo do local em que a colonia se fixa, e essas fezes dos morcegos são chamadas de GUANO.

Já que a caverna é um ambiente em que não há luz, também não pode existir vegetais que precisam da luz pra fazer fotossíntese, dessa forma o guano é o principal alimento que sustenta a cadeia alimentar de uma caverna. Há vários tipos de guano de acordo com a dieta dos morcegos que diga se de passagem é bem diversificada, comem insetos, frutos, flores, néctar, carne,  peixe, sangue e outros tipos de alimentos.

Existe mais de 900 espécies de morcegos, dessas apenas 3 se alimentam de sangue, e desses 3 apenas um se alimenta de sangue de mamíferos, os outros dois se alimentam de sangue de aves e são mais raros. O morcego mais temido e conhecido como morcego vampiro, tem o nome cientifico de Desmodus rotundus, Ocorre em todo território nacional, e bem frequente nas cavernas de Campo Formoso. É relativamente fácil reconhecer esse morcego, eles não possuem cauda, são musculosos, antebraços longos e fortes, os polegares são usados como pés para caminhar ou escalar, eles não ficam pendurados como os demais morcegos. Os dentes incisivos superiores são longos e cortantes, o que permite abrir uma ferida de forma indolor e o lábio inferior é sulcado, bem como sua língua o que permite ao sangue fluir pela sua língua quando ele lambe a ferida.

Foto de um Desmodus rotundus no dorso de um jegue. foto tirada na serra da fumaça e gentilmente cedida por Ronald Carvalho.

Uma colônia de Desmodus na Toca da Tiquara. Foto: Arquivo CAACTUS. Nessa foto dá pra notar, os dentes longos e o lábio cortado de alguns espécimes que foram flagrados com a boca aberta.

Esse é o Diphylla eucaudata, ele se alimenta de sangue de aves, e é diferente do Desmodus entre outras coisas por ter as pernas peludas. esse exemplar foi fotografado na Toca do Angico. Arquivo CACTUS.

Um Desmodus rotundus mais próximo. fotografado na Toca do Angico. Arquivo CAACTUS.

Os diferentes tipos de guano, dependem das diferentes dietas dos morcegos e permitem o desenvolvimento de diferentes tipos de comunidades de invertebrados que se alimentam desse guano. Os primeiros que chegam pra se alimentar do guano são considerados consumidores primários outros invertebrados que se alimentam dos consumidores primários dão sequencia a uma cadeia alimentar. 

O guano de morcego que se alimenta de sangue, por exemplo, contem grande número de pequenas larvas de moscas, além de especies de vermes e besouros. o guano do insetívoro predominam ácaros e , pseudo escorpiões, besouros, pequenas mariposas e moscas.

O guano dos morcegos que se alimentam de frutas, tem uma fauna bastante variada. Ali vivem aracnídeos (aranhas, opiliões, ácaros) crustáceos ( tatuzinho de jardim), miriápodes ( piolho de cobras e pequenas lacraias) e uma grande diversidade de insetos, desde os menos conhecidos como colêmbolas e psocópteras até os besouros e percevejos. 

Os primeiros a chegar no guano são as moscas atraídas pelos odores da fermentação, vermes e protozoários presentes nas fezes e urinas dos morcegos, também fazem parte da primeira colonização do guano, depois que as larvas e microorganismos se estabelecem é que chegam os parasitas e predadores. 

Um grilo, mais especificamente, uma fêmea do gênero Endecous se banqueteando com um guano de morcego frugívoro, se olhar com atenção pode se observar as sementes e folhas espelhadas pelo guano. Foto tirada na Toca do Angico em Campo Formoso. Arquivo CAACTUS.

Guano de morcegos insetivoros da Gruta do Convento, cada pontinho vermelho é um ácaro. Foto Xavier Prous.

Guano de morcego hematofogo, Diphylla eucaudata, apresentando larvas da mariposa Tineidae, que equivocadamente algumas pessoas chamam de traças. foto tirada na Toca da Tiquara. Arquivo CAACTUS.

Guano fresco de Desmodus na Toca do Angico. Arquivo CAACTUS. 

Guano envelhecido encontrado na Toca do Angico, servindo de local para reprodução do besouro Tenebrionidae. ao fundo são as larvas do besouro.

A diversidade e o tamanho da população de invertebrados muitas vezes dependem da quantidade de depósitos de guano. A maior população de Endecous e de Loxoceles (Aranha - marrom) que já vi, foi na Toca do Morrinho em Laje dos Negros. Um Salão com uma grande área e com o piso forrado de invertebrados. Quando olhamos para o teto, visualizamos uma imensa colonia a maior que já vi. fotos abaixo.

Enorme população de Endecous na Toca do Morrinho, indivíduos com todas as idades mostrando uma grande explosão reprodutiva que é necessária frente a um recurso temporário como é um depósito de Guano.

Uma parte da mega colonia de morcegos da Toca do Morrinho. Foto : Xavier Prous.

Uma foto mais próxima da colonia mostrando que se trata possivelmente de Phyllostomus ou Artibeus.

Uma das rarissímas vezes que encontrei uma cobra no interior de uma caverna, essa é uma Epicrates, conhecida como salamanta ou jibóia arco iris. Sobrevivia nesse salão provavelmente capturando morcegos que caiam da super colônia na toca do morrinho. foto X.prous.

Visão do principal salão da Toca do Morrinho localizada em laje dos negros - Campo Formoso Ba. Esse é o salão anterior ao salão com a grande colonia de morcegos. Junto ao calcário branquinho da pra ver uma formação conhecida como chert. Foto X. Prous.

Quando há intensa deposição de guano, esse não é totalmente consumido uma vez, que geralmente os organismos associados ao guano são diminutos e não conseguem consumir grandes quantidades em poco tempo. As populações crescem nas camadas superficiais do guano, e por isso grandes volumes nem sempre tem grande numero de indivíduos  Mas, podem formar uma pilha conhecida como guanogmite.

Uma guanogmite encontrada naToca da Boa Vista. foto X. Prous

Um detalhe da foto anterior.

O guano é fonte de vida para as cavernas, mas também pode trazer problemas, isso por que no guano pode desenvolver um fungo conhecido como Histoplasma capsulatum. O fungo pode se desenvolver também em ambientes abertos e em guano de aves principalmente de pombos, portanto, não pode ser associado a doença de cavernas. O micélio do fungo tem forma algodonosa e quando uma pessoa inala grandes quantidades do esporo desse fungo, pode contrair uma infecção conhecida como Histoplasmose. O quadro clinico da doença envolve febre e dores de cabeças, geralmente se cura sozinho, em caso de uma inalação maciça e o paciente já tiver problemas pulmonares, pode desenvolver a histoplasmose cronica que necessita de algumas drogas para o tratamento. Embora exista relatos que uma jovem tenha morrido de histoplasmose, essa informação não tem apoio cientifico e se realmente aconteceu foi um caso isolado. 

Micélio de Histoplasma encontrado na parede úmida da toca do calor de cima, caverna situada bem próxima da toca da barriguda, em Campo Formoso - Ba.  Foto Arquivo CAACTUS.

Quem quiser conferir mais sobre histoplasmose, e sobre como não há registros de casos letais, conferir o artigo a seguir http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822009000200020