Páginas

domingo, 19 de março de 2017

PARNA BOQUEIRÃO DA ONÇA PARTE 3 – EXPEDIÇÃO GRUTA DOS PRAZERES





Já estava pré-agendado no cronograma oficial do grupo que de 25 a 27 de fevereiro (em pleno carnaval) sairia uma expedição para a área proposta para se criar o Parque Nacional Boqueirão da Onça (PARNABO). Uma semana antes da data marcada, peguei uma informação com Estevan Eltink que sugeriu um lugar no PARNABO chamado Brejo da Brásida – O céu, as águas termais e as histórias do povoado compensam qualquer sacrifício - Disse Estevan. Também me alertou que precisaríamos de um carro 4x4. 

Dia 21 encontrei com o mito dos trocadilhos: Josan Cláudio e fiz o convite para a expedição ao mesmo tempo que compartilhava a preocupação com a falta de carros com tração nas quatro rodas. 

- Por coincidência, conheço um camarada que comprou um carro 4x4 e quer fazer um teste de fogo - Disse Josan. 

O camarada é Roninho, conhecido como “o virtual” e realmente estava com uma Renaut Duster tracionada e pronta para colocar na estrada. 

Dia 23 Roninho, pra confirmar seu status de espeleólogo de whats app, disse que iria passar o carnaval no litoral, mas que deixava o carro a nossa disposição. Tudo certo então!

Véspera de expedição sempre bate aquela ansiedade. Apesar de quase todos já estarem de pé e a postos às 6h da manhã, apenas às 11h é que realmente a expedição saiu. Ganhando o apelido de Expedição trem das onze!


Agrícia, Josan, André, Juliano e Erickson. Com a Duster emprestada de Roninho em um dos pontos mais elevados e isolados do Boqueirão da Onça.


Prospecção de bar é como chamamos as nossas paradas em cada povoado. Paramos nos botecos, pedimos uma cerveja, pegamos uma informação, deixamos avisado pra onde estamos indo e assim vamos de povoado em povoado. Em um desses paramos pra lanchar um delicioso queijo de cabra com fiambre.


Prospecção de Bar. Lagoa Branca - Campo Formoso- Ba.





A medida que os povoados iam ficando cada vez mais raros, e quando percebemos que o carro ia descrevendo temerárias curvas e voltas à beira de precipícios e penhascos, já tínhamos a certeza que estávamos no Boqueirão.



Estradas acidentadas por entre as Serras de Campo Formoso a Sento- Se.

As serras da área do Boqueirão são o habitat de uma subpopulação de onças pintadas na caatinga. Outros locais que existem subpopulações de onça nesse bioma (Serra da Capivara, Chapada Diamantina e Raso da Catarina) já são Unidades de Conservação e portanto áreas com proteção integral.


Mapa de distribuição de Onças no bioma caatinga. Em amarelo área do Boqueirão da Onça o único que ainda não é uma Unidade de Conservação.

       Desde 2005 tramita no congresso a proposta para criação do que seria a maior área de proteção integral do bioma Caatinga: O PARNA Boqueirão da Onça. Entretanto, nesta mesma área já está em fase de implantação o que será o maior parque de energia eólica do País. Nessa disputa entre parques quem saiu perdendo foi a Unidade de Conservação que atualmente é negociado para sair na forma de um mosaico garantindo que as áreas onde geram bons ventos para inserir os aerogeradores se transformem em APA que é uma unidade sustentável, mas sem proteção integral. O tamanho e o formato do parque ainda não foram definidos. Enquanto isso, 35% da vegetação original já foi perdida em relação ao ano de 2005.

Cobertura vegetal da área do PARNBO em 2005. Maior parte do território com vegetação nativa. (Ramos et al. 2010). 




Em 2009, já é possível observar uma grande área de vegetação aberta e solo exposto -regiões vermelhas no mapa. (Ramos et. al, 2010).


      Nosso primeiro impacto visual foi ao chegar ao assentamento denominado Cercadinho. E podemos ver a imponente muralha que forma a Serra da Ingrata. Sabíamos que teríamos de cruzá-la o que nos trouxe uma sensação de medo e ansiedade. A medida que a estrada ia se estreitando os arenitos e quartzitos que formam as serras pareciam que iam nos engolir em cada curva. Enquanto isso Juliano, calouro de Geologia da UFS ("Zéólogo" como batizou Josan) volta e meia batia no meu ombro assombrado “ viu aquele mergulho” dizia, referindo se ao ângulo em que as rochas se apresentavam em relação ao solo.

Assentamento de casas do Cercadinho com a imponente Serra ao fundo.
Em cada curva os paredões de ambos os lados da estrada se estreitavam para dar o aspecto caraterístico do Boqueirão.




Chegamos ao povoado de Limoeiro por volta das 18 h do dia 25. E lá vamos nós para a esperada prospecção de bar! Um refrigerante, uma cerveja e queríamos algo pra comer. Perguntaram pelo Queijo de Cabra, fui buscar no carro; Quando apresentei o queijo a turma ficou receosa, parecia que tinha estragado, o queijo estava imerso em um líquido (soro) de cor meio esverdeada. Melhor não arriscar disse Agrícia. 

Juliano retrucou que – pobre tem sistema imune diferenciado e nunca viu um pobre ter problema com comida estragada.

Neste dia pousamos na casa de seu Mateus que nos recebeu para um bom papo na varanda e nos mostrou nossa luxuosa área de camping na beira de uma nascente termal. Tomamos um excelente banho (Os mais “nutella” como Juliano e Agrícia reclamaram das algas que recobriam o chão da nossa piscina improvisada), mas todos concordaram que o céu estava esplêndido. 



Com o firmamento cravejado de estrelas acima de nós percebemos que o mundo era simples. Estávamos vivos e sentíamos isso intensamente. Nosso acampamento terminou com Erickson nos brindando com várias canções ao violão. Cabe destacar também o cuscuz de Juliano com fiambre e molho barbecue.



Piscinas de águas termais na propriedade do seu Mateus em Limoeiro. Contemplando o céu noturno.


No dia seguinte levantamos acampamento logo cedo. Lembro que tinha um cachorro faminto, e que demos todo tipo de sobra de comida e a única coisa que o animal faminto se recusou a comer foi o queijo de cabra que Juliano não dispensou. Antes de seguir caminho, seu Mateus ainda nos presenteou com dezenas de cocos que saboreamos ali mesmo.



Acampamento no Limoeiro

Nos despedimos com carinho da hospitaleira família do Sr. Mateus em Limoeiro - Sento-Sé.


Logo após Josan e eu discutirmos qual seria nossa rota, que contemplaria a Gruta dos Prazeres e um outro camping no Brejo da Brásida. Erickson e Juliano me chamaram pra confessar que estavam com um problema para resolver. Os dedicados pais de família tinham avisados as respectivas esposas que era apenas um pernoite, e agora que ficaram sabendo que provavelmente teria mais um ou dois pernoites e não tinha meio de comunicação para enviar recado entraram em desespero.

Dali em diante, fomos obrigados a ouvir as lamentações recorrentes sobre: surras, separação e histórias de pé de pano.

Josan não aguentando mais as depressivas feições dos nossos companheiros, tirou de sua carteira um item há muito tempo esquecido pelos cidadãos da cidade (Um cartão telefônico de 20 unidades) a partir daí o que se viu foi uma verdadeira caça aos “Orelhões” que são os únicos meios de comunicação que por aquelas bandas se encontram. Até que, antes de escurecer o dia, conseguiram passar o recado e todos puderam ficar aliviados.

O carro de Roninho até então não tinha nos deixado na mão, apesar dos mais diversos tipos de terreno enfrentado, porém dessa vez, a certa altura Josan teve pena do carro que estava sofrendo com os espinhos de Jurema e Tiririca nas beiradas do caminho que tentávamos desbravar na marra; Resolvemos então parar o carro e tentar chegar à Gruta dos Prazeres caminhando. Restava ainda uns bons 4 quilômetros do ponto que deixamos o carro até a caverna.

O sol castigava, e caminhávamos em um terreno que parecia areia de praia, o que tornava ainda mais cansativa a nossa trilha. Observamos pouca coisa em termos de biodiversidade, lembro-me de ter visto um casal de Quati, diversos Mocós, um ou outro Gavião, mas nada do tão temido rastro da Onça.


A serra encerra muitas surpresas para quem vai devagar e em silêncio. Quem se embrenha pela mata com pressa, na volta pode dizer que não viu nada demais. Outro que se sente por um instante e se disponha a esperar, muitas vezes, terá percebido entre o estalido das folhas secas, olhos curiosos que espreitam cautelosamente.

Já passava das 15h quando enfim chegamos a Gruta dos Prazeres. Apesar da indiscutível beleza cênica (lembra um pouco aqueles cânions do filme 127 horas) ficamos um tanto decepcionados ao saber que não se trata de uma caverna propriamente dita. É uma grande fenda com o teto parcialmente obstruído o que dá a sensação de estar em uma zona afótica.

O lugar parece funcionar como aquífero fissural, pois apesar de tudo seco na região foi o único lugar que encontramos um reservatório de água e embora não exploramos como deveríamos ter feito, conseguimos apesar da distancia ouvir o gotejamento dá água vindo das rochas.

Paradoxalmente depois de passar o caminho inteiro praguejando contra o calor infernal, não exploramos a gruta dos prazeres por que teríamos que entrar na água e esta estava gelada. O único que não reclamou da temperatura da água foi Juliano, mas esse alegou que não iria para a parte funda por que tinha observado um enorme peixe de feições diabólicas.

Passamos o tempo, observando os esfomeados peixinhos se digladiarem por migalhas de jujubas que jogávamos na água. Outros ainda experimentaram o que chamaram de limpeza de pele. Colocavam os pés na água e esperavam até que dezenas de peixinhos se punham a beliscar com relativa ferocidade suas extremidades, quem se propunha a tal experimento dizia que os peixinhos estavam retirando as células mortas. Uma ou duas vezes, alguém retirava os pés bruscamente por que aparecia um peixe maior.



Chegada a Gruta dos Prazeres
Faltou coragem para explorar a parte alagada.
Limpeza de pé por peixinhos esfomeados.




O céu ficou encoberto, o barulho dos trovões anunciavam que viria um dilúvio pela frente. Não conhecíamos a estrada e era sensato não deixar pra viajar a noite.

Chegamos a Brejo da Brásida na boca da noite, nem preciso dizer que fomos direto para a prospecção de bar.

Vamos tomar uma cerveja aqui - disse Josan

Sentamos e tomamos dez!


Prospecção de bar. Brejo da Brásida- Sento - Se.




Ainda não tínhamos local para dormir, depois de tentar e não encontrar a Dona Mariluze que é a líder comunitária do povoado, resolveu-se que o acampamento seria montado a beira do grande atrativo do lugar: “os olhos d´água”, que é uma nascente com água termal. Acampamento montado, vamos agora aproveitar o banho!


E era realmente tudo aquilo que disseram pra gente, um lago com água cristalina e temperatura agradabilíssima. Ali poderíamos amanhecer o dia, proseando enquanto relaxávamos nas águas tranquilas margeadas por uma verdejante vegetação de plantas subaquáticas. Ninguém queria sair da água até que percebi que não estávamos sós. 



Dois olhos redondos rutilantes subitamente surgia entre a vegetação nas margens do pequeno lago. Os diabólicos olhos de cor alaranjada nos fitavam com olhar hipnótico. São olhos de jacaré eu disse. Jacaré? Não pode ser, retrucavam!


Deve ser vaga-lume disse Erickson! Por via das duvidas resolvemos sair da água.


Um par de olhos brilhantes de Jacaré a nos fitar. 


Não conseguimos ficar dentro das barracas, de 5 em 5 min íamos conferir os tais olhos até confirmar realmente que eram de um jacaré com cerca de 1,5 metros. Quando ficávamos com as nossas lanternas longe da água ele se aproximava tão perto da margem que podíamos ver todos os detalhes do seu corpo ágil.


Daí em diante, nos parecia enxergar olhos dos grandes répteis emboscados na folhagem por toda parte. Contamos três, e um assombroso mais distante, que a julgar pelo tamanho do olho que brilhava como fósforo incandescente devia ser o maior deles.  


Apesar de inúmeras tentativas por nosso competente fotógrafo Ericksson, não conseguimos uma boa foto do bicho que fugia ao primeiro sinal das lanternas. 


Já era manhã do dia 27 e estávamos desarmando o acampamento e nos organizando pra voltar pra casa, quando recebemos a ilustre visita de Dona Mariluze do Amaral e seu gentil esposo o Senhor Laerte. Ficamos uma hora inteira ouvindo as histórias do povoado e de suas belezas naturais, explicou-nos a origem do nome Brásida. Que é uma palavra grega para Indomada. Os primeiros habitantes do lugar eram descendentes de Gregos e um desses gregos que agora não recordo o nome, se encantou por uma indígena de aldeia que também o nome me fugiu a memória. A questão é que a tal índia de nome Inaiá foi rebatizada de Brásida devido a sua valentia. E desse casamento improvável entre um descendente de grego e uma índia rebelde é que surgem os principais ramos familiares dos habitantes daquela terra.

Dona Mailuze, Seu Laerte e muitas histórias a beira dos olhos d água. 
Nascente do Brejo da Brásida.
Agradável banho nas águas termais. 




Não satisfeita em nos contar sobre as maravilhas naturais que guardam o lugar, Dona Mariluze queria que víssemos com nossos próprios olhos. Ao saber que nosso interesse era caverna resolveu nos levar a um local chamado de Grota da Santana. 

É bem verdade que, o que a entusiasmada Mariluze queria nos mostrar era um sítio arqueológico. O sítio que apresenta painéis de pintura rupestres, dignas de nota, é ofuscado pela grande fenda em formato de meia lua no topo da serra que pode ser vista a quilômetros de distância. 



Grafismos supostamente de duas onças. No sítio Grota da Santana.


Nossa guia muito entusiasmada nos mostrou esse painel que aparentemente não tem semelhança com as corriqueiras tradições São Francisco e Agreste. Segundo, Mariluze esses traços e figuras geométricas se assemelham as figuras de uma tribo da Amazônia Equatorial chamada Kadiweu. 


Grafismos atuais da Tribo kadweus para comparação com os painéis da Grota da Santana.

Fenda na rocha vista a centenas de metros. 


O interior da fenda se apresenta de um lado na forma de um anfiteatro e do outo lado um único conduto alto e estreito com cerca de 10 metros de extensão e com o piso forrado de guano de morcegos hematófagos. A caverna encontra-se no contexto geológico do Grupo Chapada Diamantina: Formação Morro do Chapéu que é caracterizado por Quartzitos com lentes de conglomerado e Arenito de granulação fina que vai do rosado ao avermelhado. Cavernas em rochas siliciclásticas, isto é, não carbonáticas são importantes para espeleologia por serem incomuns. A caverna da Grota da Santana se destaca por se tratar de uma caverna em conglomerado, o que raramente se encontra na província espeleológica nacional.




Os níveis conglomeráticos observados mostram clastos de diferentes dimensões (alguns maiores que 30 cm). E muitos desses clastos apresentam pinturas rupestres tornando ainda mais notável todo o cenário em que está situada a caverna aqui descrita.


Grafismos nos clastos. 





Depois de uma tarde cheia na Grota da Santana, retornamos pra casa de Dona Mariluze e fomos recebidos com um delicioso almoço preparado por seu esposo e filhas. Passamos o fim de tarde na casa de Dona Mariluze, com deliciosa prosa, cantorias e muitas cervejas. Certamente iremos retornar, por que estamos conscientes que não conhecemos 1 % da beleza e da Geodiversidade que todo local abriga.



Todo nosso agradecimento a Dona Mariluze e família. E a promessa que retornaremos em breve!

A principal lição que tiramos em passar uns dias em locais como esses, sem contato com celular ou internet, é que a vida também tinha sido plena para homens antes da tecnologia, e até mais plena e mais rica sob muitos aspectos que a vida do homem moderno. Uma paz real e a verdadeira liberdade tomaram conta de todos nós. Os grandes problemas do homem civilizado se afiguravam falsos e ilusórios, só os elementos da natureza se revestiam de importância.

Mapas da cobertura vegetal do PARNABO retirado de: APLICAÇÃO DO ÍNDICE DA VEGETAÇÃO POR DIFERENÇA NORMALIZADA (NDVI) NA AVALIAÇÃO DE ÁREAS DEGRADADAS E POTENCIAIS PARA UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
RICARDO RIVELINO DANTAS RAMOS- III Simpósio Brasileiro de Ciências Geodésicas e Tecnologias da Geoinformação, 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário