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domingo, 5 de novembro de 2017

Expedição Morro do Chapéu - As Dolinas do Morro

No território da cidade de Morro do Chapéu, no norte da Chapada Diamantina, existe uma impressionante diversidade geológica devido a diferentes ambientes deposicionais. Dentre eles, ao sul do município, uma extensa área cárstica, famosa pela presença de grandes dolinas de colapso desenvolvidas em siltitos da Formação Caboclo¹. A extensão da área e a distribuição destas feições motivaram a SEA a uma visita para exploração preliminar.

Na manhã de 14/10, um sábado, partiram de Campo Formoso Dr. House (André Veira) e Juliboy (o "zeólogo" Juliano). Em Antônio Gonçalves se juntaram Estevan Eltink, Marília e Mathaus Dartagnan (o Sméagol), este último vindo de Petrolina. Em passagem por Caém, juntou-se o Aspira, também conhecido como Emerson Cajado. Estes partiram para a histórica Vila do Ventura, situado no município de Morro do Chapéu, onde às 10h50 se encontraram comigo (Erickson Batista) e Danilo, que quase no mesmo horário havíamos partido de nossa origem, a cidade de Várzea Nova. Com a incrível precisão na previsão de horário de chegada, passamos a contemplar as ruínas da Vila do Ventura, que nos remete a uma época em que muitos garimpeiros investiam suas vidas na esperança de riqueza com o "diamante negro".

Sobrado ilustra a opulência dos tempos áureos do garimpo do carbonado. A maior parte das construções originais encontra-se hoje em ruínas. 
(Vila do Ventura - Morro do Chapéu / BA)

Vila do Ventura é um ícone dos tempos áureos da atividade de garimpo de diamantes na região, entre os anos 40 do século XIX e 30 no século XX. O diamante explorado na Vila do Ventura era do tipo carbonado, uma variedade menos pura e de coloração escura (por isso chamado de diamante negro), mas que pela sua dureza era utilizado em muitas partes do mundo na fabricação de ferramentas de cortes (brocas de perfuratrizes, por exemplo) e em diversas outras utilidades. Os carbonados da Chapada Diamantina foram de fundamental importância na construção do Canal do Panamá e nos túneis de metrô de Londres, por exemplo. A partir de 1932, com a descoberta de um substituto industrial para o carbonado e após uma grande seca, a Vila passou a entrar em declínio. 

Além da importância histórica, a Vila do Ventura possui interessante geodiversidade, como afloramentos de estromatólitos² mesoproterozoicos³, monumentos naturais como a Cachoeira do Ventura e pinturas rupestres.

Apreciamos os casarões abandonados da Vila "fantasma" do Ventura sob o sol escaldante do sertão, e ponderamos ir até a Cachoeira do Ventura - ou ao menos até onde deveria ter uma cachoeira, visto na ocasião não haver água corrente. Com o sol escaldante do meio dia, ao encontrarmos as primeiras poças d'água, calculamos faltar ainda cerca de uma hora de caminhada até a localização da cachoeira. Valeria a pena o esforço? Sob aquele sol, todos almejavam um delicioso banho (e uma cervejinha gelada). Porém, ao que o fluxo e volume do rio indicavam, no lugar da cachoeira haveria apenas um paredão. Valendo-me dos benefícios da tecnologia, puxei do bolso o smartphone, que logo me deu uma valiosa informação: estávamos à cerca de uma hora de viagem de carro até o povoado de Tareco, conhecido por seus belos balneários de águas cristalinas... Praticamente não houve objeções. "Cerveja", "banho" e "sombra" foram as palavras mais ouvidas naquele instante.

Leito do Rio Ventura. (Vila do Ventura - Morro do Chapéu / BA)

Relaxados em confortáveis cadeiras de plástico e refrescando a garganta, era de se esperar que o passo seguinte fosse refrescar todo o corpo numa das piscinas do balneário. No entanto, todos passaram a refrescar a mente com calorosas discussões sobre a vida, o universo e tudo o mais. Divergências e convergências de cosmovisões à parte - sim, gostamos desta palavra -, o que prevaleceu foi a sensação de respeito e inclusão, coisa que infelizmente anda um tanto rara em discussões em grupo, ainda menos quando se trata de assuntos ditos "polêmicos". Nem sempre há pessoas em que nos sentimos a vontade para "viajar na maionese" em assuntos diversos e aleatórios sem receio do julgamento do outro...

Já dizia o mandamento: Ser bom, ser justo, cerveja!

Ao final da tarde, empolgados nas conversas, lembramos que "balneário" é uma palavra que remete a banho, e então, nos refrescamos por alguns instantes numa das piscinas do Balneário Pé de Serra, uma das opções no Povoado de Tareco.

Balneário Pé de Serra - Povoado de Tareco - Morro do Chapéu / BA

Já era noite quando rumamos à florida Morro do Chapéu. Alojamos-nos no Centro Integrado de Estudos Geológicos - CIEG, unidade referência no treinamento de geólogos da CPRM em terrenos sedimentares. O CIEG também dá suporte a universidades e outras instituições que realizam estudos e pesquisas na região relacionadas à geologia e áreas afins.

Além de importante ponto de apoio, nas dependências do CIEG fica a Capela Nossa Senhora da Soledade. Esta capela abriga os restos mortais de ilustres autoridades, como o Coronel Francisco Dias Coelho, muito conhecido não só por ter sido um coronel negro, como por ter sido uma autoridade visionária, que muito contribuiu para o desenvolvimento de Morro do Chapéu e região. Em 1910 recebeu de presente de uma firma francesa (Levy de Paris) uma imagem de Nossa Senhora da Soledade, com cerca de 2 metros, em razão das boas relações comerciais entre este país e o referido coronel durante o auge da exploração de diamante e salitre na região. Tempos antes Dias Coelho havia sido convidado a ir à França, convite que prontamente recusou por saber o tratamento dado aos negros na Europa daquela época.

Capela Nossa Senhora da Soledade, nas dependências do CIEG - Morro do Chapéu / BA.

À noite, apreciamos o clima agradabilíssimo de Morro do Chapéu, famosa por ser uma das cidades com médias de temperatura mais baixas na Bahia. A cidade exala cultura (ao menos na ótica do visitante), com sua bela Praça da Música e o Mercado Cultural. Assim, não diferente do esperado, havia festejos em praça pública, o que também contribuiu para uma longa espera numa pizzaria... Comemos tarde, dormimos tarde, atitude não muito inteligente para quem precisaria acordar cedo no dia seguinte. O combinado era estarmos de pé para irmos a campo às 06h00.

Horas depois de adormecermos um dos celulares despertou até que alguém se levantou para desligá-lo, pouco antes de ele começar a ficar rouco. Sméagol ainda dormia, e estranhamos ele não ter acordado com o icônico "mestre, mestre, acorda!" de outra expedição... Aos poucos, todos foram se levantando, com uma sensação de que não havíamos dormido o suficiente. Já estávamos todos despertos  - ou quase isso - quando reparamos que fomos "trolados" por nossos celulares, que certamente estavam "confusos": com o fuso no horário de verão de Brasília, que acabara de iniciar em alguns estados. Na Bahia não, o que nos privou de uma preciosa hora "extra" de sono.

Estevan e Marilia, que estavam em outro quarto, também tiveram seu despertador adiantado: um galo melodioso, que nos rendeu um "earworm" ao longo do dia com seu marcante e maçante "thu-thu-ru-thúúúúú"...

No início da manhã nos encontramos com o nosso guia, Gilmar Novais, um dos melhores guias turísticos de Morro do Chapéu e região. O sr. Gilmar conhece a região como a palma da mão, e nos contagia sempre com sua sede de saber. Antes de partirmos, nos deu uma detalhada aula sobre o coronelismo e extração de minérios na Chapada Diamantina a partir das figuras do cel. Dias Coelho e de seu padrinho cel. Horário de Matos. 

Saímos na manhã de domingo entusiasmados rumo ao Buraco do Possidônio, a cerca de 18 km do Morro do Chapéu, praticamente meio caminho até nosso destino principal, a Gruta do Cristal. O Buraco do Possidônio é uma grande dolina de colapso, uma depressão em formato cilíndrico, formado pelo abatimento de um amplo vazio subterrâneo. Possui cerca de 120 metros de diâmetro e 30 metros de profundidade e se destaca na monotonia do relevo da área. Devido a sua profundidade, cria um microclima em seu interior, que favorece o desenvolvimento de uma vegetação mais verde, densa e com espécies bem diferentes da predominante em seu entorno. Dentre as espécies presentes, enormes cedros. 


Buraco do Possidônio - Morro do Chapéu / BA

O Buraco do Possidônio está localizado numa extensa área cárstica ao sul do município de Morro do Chapéu. De acordo com ROCHA et al (2015): "Trata-se de um carste encoberto onde as dolinas, em diversos estágios evolutivos e categorias morfogenéticas, são as feições mais comuns em superfície, via de regra estabelecidas nos siltitos e associadas à cavernas formadas em profundidade. [...]". Sobre o interior do Buraco do Possidônio explanam que "a pilha de blocos e sedimentos resultante do desmoronamento bloqueou o acesso ao endocarste". Ou seja, o acesso ao meio meio subterrâneo, à caverna que lhe deu origem, está bloqueado. Ainda assim, num futuro próximo pretendemos retornar com os devidos equipamentos para decida e averiguação. 

Buraco do Possidônio - Morro do Chapéu / BA
(Fotografia: Erickson Batista)

Do Buraco do Possidônio até a Gruta do Cristal são 24 km, mas quem quiser se dirigir diretamente até esta a partir de Morro do Chapéu, o caminho mais prático é pela BA-144 (estrada para o Bonito) passando pelo povoado de Catuaba, num percurso total de 52,4 km. 

Gruta do Cristal tem quatro entradas conhecidas e possui um padrão labiríntico reticular. ROCHA et al (2015) afirmam que "A Gruta do Cristal é um bom exemplo de caverna resultante de dissolução em zona saturada, com controle estrutural, representada por uma densa rede, com mais de 4,5 km de desenvolvimento de galerias retilíneas, conformando um padrão labiríntico, cuja formação foi condicionada por conjuntos de fraturas verticais". Segundo Berbert-Born & Sena Horta (1995) apud Rocha e Pedreira (2013) "ainda não foi devidamente explorada, mas seu condicionamento físico e genético apontam um grande potencial no que se refere ao desenvolvimento de inúmeras galerias intercomunicantes." Como característica peculiar, a Gruta do Cristal é conhecida por essencialmente ser desprovida de espeleotemas. 

 Fazenda Cristal (que dá nome à gruta) possui estromatólitos² mesoproterozoicos³ e outras estruturas de origem marinha, o que motivou a ser incluída na lista da Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos - SIGEP. 

Ainda que com um mapa da CPRM em mãos, mesmo muito detalhado, penamos tentando nos situar por ele devido, talvez, à quantidade de entradas da Gruta do Cristal. Com a persistência dessa dificuldade, passamos a explorar livremente, encantados com os amplos salões e o aspecto labiríntico da caverna. Exploramos por uma entrada e saímos em outras duas. Mas mesmo com essas referências espaciais, finalizamos a exploração mais confusos do que antes em relação ao mapa, por não encontrarmos relações entre o representado e o que estava sendo explorado. Assim, devido a limitação de horário, optamos para deixar a exploração da Gruta do Cristal para um momento posterior, e optamos por conhecer mais dolinas da região.
Gruta do Cristal - Morro do Chapéu / BA
(Fotografia: Erickson Batista)

Assim, não muito longe dali, conhecemos o Buraco da Velha Duda, uma dolina tão ou mais imponente que o famoso Buraco do Possidônio. Em linha reta, dista a apenas cerca de 1,5 km da entrada clássica da Gruta do Cristal, o que nos fez supor uma possível conexão entre ambas. No entanto, segundo Leda Zogbi, que participou de mapeamento realizado pela Meandros Espeleo Club em 2012, "seu desenvolvimento linear não deve ultrapassar 1 km, mas as áreas e os volumes internos desta caverna são realmente impressionantes". Afirma também que "apesar de reconhecermos facilmente o calcário [...] que é o mesmo da Gruta do Cristal, constatamos que, apesar da proximidade geográfica, as duas cavernas se desenvolveram de maneira bastante diversa uma da outra." (ZOGBI, 2012).

Verificamos a possibilidade de descida, que poderia ser feita por raízes de gameleiras. Danilo chegou a descer aproximadamente metade do percurso, mas devido aos evidentes riscos na decida e a nossa limitação de tempo, optamos por retornarmos em outra ocasião para uma exploração completa.

Mesclagem de duas imagens para uma visão "panorâmica"
Buraco da Velha Duda - Morro do Chapéu / BA

Sobre o seu desenvolvimento, Leda Zogbi diz que "A Gruta da Velha Duda é composta por dois conjuntos de grandes salões: a sudoeste, os salões são cheios de blocos instáveis. Nas laterais paredões retos, impressionantes e ao fundo, belos cristais de gipsita; seguindo para norte há um salão gigantesco, completamente horizontal, com piso coberto por argila, um verdadeiro “campo de futebol” subterrâneo. No fundo dos salões (tantos para SO quanto para N), há longos e largos trechos de teto baixo". (ZOGBI, 2012).

Já em meados da tarde, fomos verificar também o Buraco do Alecrim, um dos pontos que mais ansiávamos para averiguar. O Buraco do Alecrim surgiu em 2008, à beira de uma estrada. Possui cerca de 1 metro de diâmetro e suas dimensões e profundidade são desconhecidas. Devido ao surgimento recente do abismo e à sensação de que toda a área pode colapsar a qualquer momento, o Buraco do Alecrim traz em seu nome uma áurea de medo para os moradores da região. O fato de ainda não ter havido descida para avaliar a sua extensão interior contribui para esta má fama. Será este um trabalho para a SEA?


O Buraco do Alecrim possui profundidade e dimensões internas desconhecidas. (Morro do Chapéu / BA)

Mestre André averiguando as possibilidades de descida no Buraco do Alecrim
(Morro do Chapéu / BA)

A SEA, com sua missão de contribuir com o conhecimento e valorização do patrimônio espeleológico regional, sente-se grata por mais esta expedição, realizada com sucesso, à cidade de Morro do Chapéu e na certeza que em breve haverá retorno.


NOTAS:
¹A Formação Caboclo, de idade mesoproteroizoica, é composta pela interestratificação de camadas de siltito e lamito depositadas em um ambiente marinho raso dominado por tempestades. Da base para o topo, as formações Tombador, Caboclo e Morro do Chapéu, compõem o grupo Chapada Diamantina na região.
² Estromatólito é uma rocha fóssil formada por atividades de microrganismos em ambientes aquáticos (marinhos ou lacustres).
³ O Mesoproterozoico é a era, na escala do tempo geológico, que está compreendida entre 1 bilhão e 600 milhões e 1 bilhão de anos atrás.



REFERÊNCIAS / LEITURA RECOMENDADA

ZOGBI, Leda. Gruta da Velha Duda é mapeada em Morro do Chapéu, Bahia. Meandros Espeleo Club. Publicado na Internet em 17 jun. 2012. Disponível em: https://sites.google.com/site/meandrosespeleoclube/news/grutadavelhadudaemapeadaemmorrodochapeubahia. Acesso em 05 nov. 2017.

ROCHA, Antônio José Dourado et al. O Buraco do Possidônio – Morro do Chapéu. In: SILVA, Augusto J. Pedreira de; PEREIRA, Ricardo Galeno Fraga de Araújo; GUIDICE, Dante Severo. Geossítios: cenários da geodiversidade da Bahia. Salvador: CBPM, 2015. p.26-27. (Publicações Especiais, 17).

ROCHA, Antônio José Dourado; PEDREIRA, Augusto José. Geoparque Morro do Chapéu, Bahia: proposta. Organização de Adalberto de Figueiredo Ribeiro. CBPM. Salvador: CBPM, 2013. 64 p. il. (Publicações Especiais, 14).

Srivastava,N.K.; Rocha,A.J.D. 1999. Fazenda Cristal (Bahia) - Estromatólitos mesoproterozóicos. In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A.; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M. (Edit.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. Publicado na Internet em 29/12/1999 no endereço http://www.unb.br/ig/sigep/sitio093/sitio093.htm [Atualmente http://sigep.cprm.gov.br/sitio093/sitio093.htm]



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