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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Spelaeogammarus! Quem são? Onde encontramos? e por que são importantes?

Quem são os Spelaeogammarus?

Popularmente são conhecidos como "Pitu" das cavernas. Trata-se de um minúsculo crustáceo de água doce (parente distante dos camarões) estão incluídos dentro da ordem dos Amphipoda ou anfípodes. As espécies de Amphipoda tem grande variação de tamanho, ocupam uma diversidade de habitats incluindo ambientes marinhos, de água doce e até ambientes terrestres úmidos. Dentro dos Amphipoda existe um grupo chamado de Gammaridea que são praticamente exclusivos de água doce e que o gênero mais conhecido é o Gammarus

Comparação mostrando as diferenças entre um anfípoda de água doce (que mais parece uma pulga aquática) com o pitu verdadeiro (um camarão de água doce).

O primeiro Gamaridea descrito em uma caverna brasileira ganhou o nome de Spelaeogammarus bahiensis; Spelaeo é o termo em latim para caverna.  Iva Nilce da Silva Brum descreveu esse novo animal em 1973, e no trabalho é informado que o material (2 machos e três fêmeas) foram coletados em uma caverna procedente do Distrito de Matamuté (Sic), Município de Curaçá na Bahia.  Na verdade no nome correto do distrito é Patamuté que é um termo da língua Cariri que significa "antas n'água. Não há registro de novas coletas do animal em Curaçá e fotos do espécime são desconhecidas, os trabalhos que citam o S. bahiensis repetem o erro de informar Matamuté ao invés de Patamuté. 

Desenho do artigo original que descreve o gênero. 

No final dos anos 80 e começo dos anos 90 pesquisadores do Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas identificaram e coletaram vários exemplares de Spelaeogammarus nas cavernas de Campo Formoso, principalmente Toca do Pitu, Lapa do Convento e Toca do Gonçalo; Inicialmente, acreditava-se que eram Spelaeogammarus bahiensis, porém na revisão feita por (KONEMANN & HOLSINGER, 2000) esses exemplares foram descritos como Speleogammarus trajanoae. A espécie é nomeada em homenagem a Professora da USP Eleonora Trajano por suas importantes contribuições para biologia subterrânea brasileira. 

No meu trabalho de graduação identificamos esse espécime (S. trajanoae) para uma nova caverna em Campo Formoso: a Toca da Tiquara (ARAÚJO & PEIXOTO, 2014); Posteriormente, nos trabalhos do Mestrado o identificamos em uma nova caverna em Várzea Nova: A Toca do Carlito (ARAÚJO et al., 2017).

Em C) coletando Amphipoda para o trabalho da graduação; D) tentativa de fotografar o minúsculo crustáceo em campo. E) Detalhe do S. trajanoae da Tiquara para a Dissertação do Mestrado. 


Registro extraordinário  de S. trajanoae feito pelo Erickson Batista na Toca do Carlito em Várzea Nova.

Do município de Iraquara foram coletados alguns exemplares nas cavernas Baixa do Salitre e Jaburu que foram identificados por (KONEMANN & HOLSINGER, 2000) como sendo da espécie Speleaogammarus spinilacertus. Mais tarde em 2004 Alexandre Camargo encontrou um exemplar de S. spinilacertus na Gruta da Torrinha (também em Iraquara). O exemplar de Iraquara é distinto das outras espécies do gênero por possuir alguns espinhos em um dos apêndices. Inclusive esse é o significado do nome spini= significa espinho e lacertus= braço superior.

Spelaeogammarus spinilacertus da Gruta da Torrinha. Foto: Alexandre Camargo (2004).


Da gruta do Padre, no município de Santana no oeste da Bahia foram coletados exemplares que (KONEMANN & HOLSINGER, 2000) identificaram como os de maior tamanho corporal comparado com as demais espécies (macho 13mm e fêmea 10 mm) , aparenta também maior transparência e é tecnicamente distinto das outras espécies por apresentar flagelos acessórios segmentados. Essa espécime foi batizada de Spelaeogammarus santanensis em referência a cidade de Santana.
Assim, como o S. bahiensis, não encontrei nenhuma imagem do S. santanensis.

No entanto, em 2014 André Senna (UFBA) junto com outros colaboradores descreveram uma nova espécie que está relacionada ao S. santanensis, essa espécie foi encontrada na caverna PEA- 445 na cidade de Santa Maria da Vitória e apresenta algumas características distintivas sendo uma das características que chamam a atenção o comprimento. Enquanto que até então S. santanensis ocupava o posto de maior Spelaeogammarus com 13mm esse novo espécime encontrado em Santa Maria da Vitória tem mais que 18mm de comprimento sendo considerado agora o maior Spelaeogammarus e por isso mesmo foi batizado com o nome de Spelaeogammarus titan!


S. titan. Foto de Rodrigo L. Ferreira uma dos autores do trabalho de descrição.



Rafaela Basto-Pereira & Rodrigo Lopes Ferreira (UFLA), descreveram recentemente mais 02 novas espécies: Spelaeogammarus sanctum para a conhecida e muito visitada caverna do Bom Jesus da Lapa e Spelaeogammarus uai coletado na Lapa d' água do Zezé em Itacarambi- MG. Sendo esse último o primeiro Spelaeogammarus registrado fora do Estado da Bahia; Embora a caverna faça parte da mesma unidade geológica (Grupo Bambuí) em que foram descritas as espécies S.santanensis, S. titan e S. sanctum.





Onde estão os Spelaeogammarus?

Aqui está uma excelente oportunidade para falar sobre nossos aquíferos cársticos. A interação entre as águas superficiais e subterrâneas em locais que tem rochas carbonáticas, resulta em um complexo e imprevisível aquífero denominado aquífero cárstico. Esses aquíferos são pouco estudados do ponto de vista biológico e costumam apresentar um grande número de espécies únicas e exclusivas. 
No Estado da Bahia temos aquíferos cársticos relacionados a bacia do Rio São Francisco. No oeste temos um aquífero nos carbonatos do Grupo Bambuí na bacia do Urucuia; Na região central, temos o aquífero nos carbonatos do Grupo Una subdividido nas bacia Una- Utinga e bacia de Irecê na região da Chapada Diamantina e também nos carbonatos do Grupo Una temos a bacia do Salitre na região norte do Estado; Os carbonatos ocorrem ainda em um pequena faixa na Sub-bacia de Curaçá-Canudos. Ver mapa a seguir.


No aquífero cárstico da bacia do Urucuia foram encontrados 4 espécies: Spelaeogammarus uai; S. sanctum, S. titan e S. santanensis. Da bacia de Irecê foi descrito o S. spinilacertus; Na bacia do Salitre o S. trajanoae; e na bacia de Curacá-Canudos o Spelaeogammarus bahiensis. Uma olhada rápida no mapa e já dá para fazer uma previsão científica. Uma espécie de Spelaeogammarus está aguardando ser descoberta e descrita na bacia de Una-Utinga!

Além disso, a própria bacia de Irecê é subestimada com relação a ocorrência do anfípode. Na bacia do Salitre ocorre um número maior de expedições  espeleo-científicas e o crustáceo já foi registrado de um extremo a outro da bacia. Enquanto que na parte norte da bacia de Irecê, na sub-bacia do  rio Verde-Jacaré há uma lacuna de conhecimento espeleológico.

Nessa imagem pode-se observar a ocorrência de Spelaeogammarus por bacia no Estado da Bahia. 

Podemos pensar em duas hipóteses para explicar a distribuição do Spelaeogammarus. Uma primeira possibilidade seria que o ancestral do Spelaeogammarus (talvez, um parente que vivesse nas águas superficiais) invadiu um ponto específico do aquífero e a partir daí se espalhou por migração para todos os pontos onde hoje eles são encontrados. Transpondo barreiras entre uma unidade geológica e outra e pouco a pouco separando as populações e promovendo especiação. 
" Um exemplo hipotético: O ancestral invadiu o ambiente subterrâneo onde hoje é a bacia do Urucuia na região oeste. E formou a espécie 01 uma parte da população da espécie 01 conseguiu transpor a barreira e migrou para o aquífero na parte central do Estado e essa população isolada formou a espécie 02. O processo se repete formando a espécie 03 a partir de uma parte da população da espécie 02 e assim sucessivamente." 

A hipótese alternativa a da migração é a chamada hipótese do efeito vicariante. Nessa proposta as bacias que hoje estão separadas já foi no passado uma única unidade geológica e nessa unidade a espécime ancestral do Spelaeogammarus era abundante e ocupava o aquífero como todo. Com o tempo (intemperismo e erosão), essa unidade se fragmentou em várias "ilhas" que hoje são as bacias, separando a população que antes era contínua em várias subpopulações isoladas, cada uma dessas subpopulações acumulou as diferenças que as tornam espécies diferentes. 

Qual das duas hipóteses é mais provável?
 Usar esse espécime para ajudar a explicar esse importante tipo de questão evolutiva já responde a pergunta do título da postagem

Por que Spelaeogammarus importa?

As espécimes encontradas em aquíferos cársticos são representantes de espécies muito antigas que foram abundantes no passado e hoje são restritas a esses ambientes e por isso são chamadas espécies relictuais. 
No trabalho que desenvolvemos durante o Mestrado tentamos dar uma olhada nessa questão da distribuição, utilizando uma das bacias como modelo. Escolhemos a bacia do rio Salitre e observamos a ocorrência das populações de Spelaeogammarus trajanoae para pensar se migração ou efeito vicariante explicaria melhor essas populações estarem separadas dentro da bacia. 
No mapa a seguir observa-se as cavernas que permite acesso ao aquífero e tentamos registar os Amphipodas. 


O que percebemos preliminarmente é que Spelaeogammarus parece ter baixo poder de dispersão. Mesmo em cavernas que o lençol freático aflora em pontos diferentes os espécimes foram observados sempre nos mesmos pontos. Outro ponto que percebemos é que locais em que eles já foram registrados em trabalhos anteriores com por exemplo na Toca do Gonçalo em Campo Formoso, não foram mais observados devido ao rebaixamento do lençol freático. 

Sugerimos nesse trabalho que Speleogammarus já foi abundante em todo o aquífero da bacia do Rio Salitre, mas que mudanças paleoclimáticas restringiu esses anfipodes em refúgios de hábitat subterrâneos em longos períodos de seca o que poderia ser uma razão para não encontrar populações em pontos com conexões hidráulicas. É claro que outras explicações são plausíveis e apenas começamos a fazer as perguntas. 
No entanto a grande preocupação é: Vamos ter tempo para responder? Isso por que a má utilização da água subterrânea para agricultura extensiva junto com a contaminação do lençol freático pelos mais diversos tipos de poluentes aliados a crise climática trazendo anos com cada vez menos chuvas pode levar a extinção dessas maravilhosas criaturas antes mesmo que eles possam nos ajudar a responder simultaneamente como evoluiu a espécie e o relevo.

Referencias 

ARAÚJO, A.V. & PEIXOTO, R.S. The Impact of Geomorphology and Human Disturbances on the Faunal Distribution in Tiquara and Angico Caves of Campo Formoso, Bahia, Brazil. Ambient Science, 2014: Vol. 01(1).

ARAÚJO, A.V.; Leal, L.R.B.; Gomes, D.F. Anfípode subterrâneo do gênero Spelaeogammarus como um indicador de conectividade em um aquífero cárstico da bacia do rio Salitre, centro norte do Estado da Bahia. In Proceedings of the Anais do XIX Congresso Brasileiro de Aguas Subterrâneas, Campinas, Brazil, 20–23 September 2016; Associação Brasileira de Águas Subterrâneas: São Paulo, Brazil, 2016

ARAÚJO, A.V; BASTOS-LEAL, L.R.; Gomes, D.F. Novos dados preliminares sobre o padrão biogeográfico de Spelaeogammarus trajanoae Koenemann & Holsinger, 2000(Amphipoda: Bogidiellidae) no aquífero cárstico da bacia do rio Salitre, centro norte do Estado da Bahia. Revista Brasileira de Espeleologia- RBesp. V. 2, nº8 .2017.

BASTOS-PEREIRA, R. & FERREIRA R.L. A new species of Spelaeogammarus (Amphipoda: Bogidielloidea: Artesiidae) with an identification key for the genus. Zootaxa 4021 (3): 418–432. 2015. http://dx.doi.org/10.11646/zootaxa.4021.3.2.

CAMARGO, A. Gruta da Torrinha: Uma nova localidade do anfípode troglomórfico, Spelaeogammarus spinilacertus (Bogidiellidae), de cavernas de Iraquara, Bahia. Revista O Carste, Volume 16 nº1. 2004.

KOENEMANN, S. & HOLSINGERr, J.R. Revision of the subterranean amphipod genus Spelaeogammarus (Bogidiellidae) from Brazil, including descriptions of three new species and considerations of their phylogeny and biogeography. Proceedings of the Biological Society of Washington, 113 (1), 104–123. 2000.

SENNA, A.R., ANDRADE, L.F., CASTELO-BRANCO, L.P. & FERREIRA, R.L. Spelaeogammarus titan, a new troglobitic amphipod from Brazil (Amphipoda: Bogidielloidea: Artesiidae). Zootaxa, 3887 (1), 55–67.2014. http://dx.doi.org/10.11646/zootaxa.3887.1.3.


 

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